Sean P. Anderson via FlickrSe tivesse de citar um caso modelar em que limites devem ser impostos, daria um só nome: Alex Jones

Alex Jones e os limites da liberdade

O sujeito que levou milhões de americanos a duvidar de um massacre real em uma escola é um caso assustador, mas pouco tem a ver com nossa censura judiciária
26.04.24

Elon Musk se diz um “absolutista da liberdade de expressão”, mas tudo o que é absoluto desmancha na nuvem. Nas ditaduras ou quase ditaduras em que ele tem negócios, como China e Índia, o bilionário não se importa em relativizar as liberdades. O dono do X também já suspendeu temporariamente contas de jornalistas que o desagradavam, sob o frouxo pretexto de que eles haviam colocado sua segurança em perigo ao divulgar por onde seu jatinho andava viajando. 

Ainda que não fosse uma impostura, essa conversa de liberdade de expressão absoluta ainda seria uma bobagem. Acho que já disso isso antes: o pessoal que gosta de falar em “limites da liberdade de expressão” em geral só quer censura. Mas isso não significa que certos limites não sejam necessários e inevitáveis. 

 Hoje, se tivesse de citar um caso modelar em que limites devem ser impostos, daria um só nome: Alex Jones.  

Ele é o criador e a principal estrela do Infowars, popular site que serve de amplificador para as mais doidivanas paranoias da alt-right americana. Até aí, nada demais: os delírios dos extremos ideológicos merecem circular na conversa política, até para que possamos contestá-los. Mas Jones não se limita a divulgar ideias tortas. Suas mentiras já se mostraram destrutivas. 

Resenhei recentemente, no Brazil Journal, The Truth vs. Alex Jones, documentário da HBO que recomendo efusivamente aos leitores. Na resenha, chamei Jones de “o mais sórdido dos conspiracionistas”. Não é exagero, como demonstra a campanha asquerosa movida pelo Infowars contra os pais das crianças assassinadas na Escola Sandy Hook, na pequena cidade de Newtown, Connecticut. Esse é o tema central do documentário. 

Em 14 de dezembro de 2012, um homem armado com um rifle de repetição entrou na escola atirando na porta de vidro. Matou seis funcionários e vinte crianças, que tinham entre seis e sete anos. Depois, sacou a pistola e deu dois tiros – o primeiro no teto, o segundo na própria cabeça. 

Nas primeiras horas depois do massacre, Jones estava ao vivo no Infowars sugerindo que fora tudo uma armação para privar os americanos do direito sagrado de ter armas de fogo. Nos dias, meses, anos seguintes, Jones, seus repórteres e colaboradores montaram uma alucinada teoria da conspiração, segundo a qual ninguém morreu em Sandy Hook. 

 Não era sua primeira teoria conspiratória. Em 2001, Jones divulgou a tese de que o governo era o responsável pelos atentados de 11 de setembro. Em Sandy Hook, ele foi além: acusou pais abalados pela perda de filhos pequenos de serem cúmplices de uma farsa. Divulgou o nome e a imagem de alguns desses pais, que passaram a ser insultados nas ruas e nas redes sociais. Estranhos vinham lhes dizer que seus filhos assassinados na verdade estavam vivos. Ou, pior, que nunca existiram. 

O documentário acompanha os processos que alguns pais moveram contra Jones por difamação e danos morais. Escorregadio, Jones acabaria reconhecendo que houve um massacre na escola fundamental de Newtown, mas ainda assim se apresentava como um paladino da verdade que o establishment tentava calar. Balela: a liberdade de expressão garantida pela primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos não foi violada nas cortes do Texas e de Connecticut onde ele foi julgado. Jones foi chamado à responsabilidade pelo dano que suas contrafações perniciosas causaram aos pais de crianças assassinadas, mas seu direito de dizer novas mentiras não foi revogado.  

Tendo perdido nas duas cortes, Jones foi condenado a indenizar suas vítimas em mais de um bilhão de dólares, que até hoje não foram pagos – sua empresa declarou falência. O site de fofocas TMZ recentemente flagrou o mitômano profissional de férias em um resort luxuoso do Havaí.  

Nos raros casos em que cabe ao judiciário limitar a livre expressão, o correto é que se silencie apenas a mensagem ilegal, não seu emissor. A justiça brasileira não tem agido assim, derrubando não só publicações que supostamente “atacam a democracia”, mas as contas de seus autores. Como bem disse Carlos Graieb na edição anterior de Crusoé, a pessoa punida se vê “privada, por tempo indeterminado, da possibilidade de falar não apenas sobre política, mas também sobre futebol, novela, bichinhos de estimação ou o que for. A ironia é que, nesse ponto, o xerife do STF age tal como o imperador do X, que suspendeu as contas dos jornalistas que supostamente revelaram o paradeiro de seu jatinho quando poderia ter apenas apagado os posts indiscretos.   

Concordo com o princípio de punir o que foi dito no passado – se couber punição, claro – sem proibir o que será dito no futuro. A impunidade de Jones, porém, me faz balançar. Graças a um expediente malandro, as pesadas indenizações que ele deveria pagar não serviram para coibir seu império da mentira. Seria o caso de instaurar mecanismos legais para afastar da internet um rematado embusteiro cujas mentiras influenciam milhões de pessoas e destroem a vida de gente inocente? Não valeria aqui o mesmo princípio que empregamos para tirar a habilitação de quem dirige bêbado ou para manter maridos agressores à distância da esposa agredida? Quando olho para a estampa asquerosa de Alex Jones, minha resposta às duas perguntas é um “sim” indignado. Mas então considero a figura elegante de certos juízes que teriam o poder de derrubar meu Instagram (onde só publico inocentes fotos de felinos) por qualquer coisa desagradável que eu tenha dito sobre nossas instituições democráticas (que seguem funcionando normalmente!), e reconsidero essa opinião. 

Entre as contas suspensas por STF e TSE, haverá algum influenciador comparável em abjeção a Alex Jones? Algum site com o alcance do Infowars? Eu duvido. Mas não há como saber: o sigilo decretado pelos juízes nos impede de discutir o que os juízes decretam.   

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Esse tipo de canalha, como Trump e outros que bem conhecemos por aqui existem para testar os limites da democracia. Cabe aos homens de bem com poder para tal mostrar que ela tem respostas a esse tipo de ameaça, dentro da lei e do bom senso. Não o que parte do STF tem feito.

  2. Não. A resposta é não. Ele continuaria com a sua liberdade de expressão intacta. Só não sei se teria acesso à internet da cadeia, que é o lugar que deveria estar.

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