Adriano Machado/CrusoéA PGR ao cair da noite: procuradores

Ajustando a lupa

Como os órgãos de investigação estão se organizando para evitar que os bilhões de reais dos contratos emergenciais firmados pelos governos na crise escoem pelo ralo da corrupção
17.04.20

Em junho de 2010, a tragédia a dominar o noticiário brasileiro estava relacionada aos mais de 40 mortos nas enchentes em cidades de Alagoas e Pernambuco. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como é costume em situações assim, sobrevoou a região e anunciou depois o repasse de mais de 500 milhões de reais para despesas emergenciais. Em novembro de 2017, a Polícia Federal saiu às ruas para prender autoridades metidas com empresários locais em um esquema que desviara uma parte importante dos valores que o governo federal havia enviado para o socorro. O mal atávico da corrupção tinha prevalecido sobre a necessidade. Coisas do Brasil.

Agora, em 2020, a tragédia é muito maior, tem escala mundial e os recursos públicos destinados à contenção do vírus chegam à casa dos bilhões de norte a sul do país. Ante a emergência, aos valores estratosféricos dos contratos e a necessidade de comprar insumos e equipamentos em volumes nunca vistos antes, uma pergunta se impõe: será possível fiscalizar de maneira decente se parte do dinheiro gasto pelo governo federal, por estados e prefeituras não está sendo sugada pelos ralos da corrupção?

Apenas o governo federal, na rubrica exclusiva para gastos no combate ao coronavírus, já gastou 5 bilhões de reais em pouco mais de um mês. Não há previsão de teto para essas despesas. Estima-se que só o Ministério da Saúde despenderá ao menos 30 bilhões. Crusoé procurou os órgãos de investigação, fiscalização e controle para saber como eles estão se organizando para evitar os desvios. Polícia Federal, Tribunal de Contas, Controladoria da União e Ministério Público, entre outros, garantem que estão de olho, mas admitem que, em razão do caráter atípico dos gastos, o trabalho não será nada fácil.

Responsável por investigar possíveis irregularidades nas contratações com dinheiro federal, a PF tem procurado monitorar diariamente o portal criado pelo governo onde são registradas todas as contratações e repasses emergenciais. A ideia é produzir relatórios de inteligência sobre indícios de irregularidades nas contratações. Estão na mira, em especial, empresas recém-criadas, discrepâncias dos valores pagos em relação a outros contratos similares e firmas envolvidas em escândalos do passado.

Procuradores do Ministério Público Federal seguem a mesma lógica. Com coordenação em Brasília, foi montado um grupo especial com representantes de todos os estados, para tentar identificar indícios de desvios. A ordem é para, a qualquer sinal de irregularidade, abrir uma investigação formal. O grupo tem procurado trabalhar em contato permanente com auditores do TCU e da CGU, que também têm a atribuição examinar as despesas.

A parte que cabe ao TCU tem sido feita de casa – e, pelo número de envolvidos na missão, já é possível depreender que será difícil olhar tudo a contento. Desde março, dois auditores da secretaria encarregada de fiscalizar os gastos da área de saúde foram designados para fazer o monitoramento. Em razão da vastidão dos contratos, eles estão priorizando aqueles que envolvem valores mais significativos. Hoje, se debruçam sobre 70, precisamente. A dupla, em isolamento, se fala diariamente por aplicativos de mensagens e, uma vez por semana, faz uma videoconferência com o chefe do setor para atualizá-lo do andamento do trabalho e definir os passos seguintes.

Já há um protocolo definido para o caso de serem identificadas irregularidades: os auditores estão orientados a avisar o chefe para que, em seguida, o ministério responsável pelo contrato seja alertado do problema. Só se o alerta for ignorado é que será aberto um procedimento de apuração que pode resultar em punição para os gestos envolvidos.

O secretário-geral da Presidência do TCU, Maurício Wanderley, diz que até o momento não tem conhecimento de nenhuma suspeita grave. Ele explica que, em razão do cenário de guerra, com a disputa mundial por insumos médicos, a postura da corte tem sido no sentido de, primeiro, orientar os gestores. O ministro Benjamin Zymler foi designado como relator dos processos que surgirem dos contratos relacionados à pandemia.

A CGU, por sua vez, além de criar um portal para listar as contratações, estabeleceu como prioridade identificar e alertar para os riscos antes de os contratos serem assinados. Foram criados dois grupos de trabalho, um dedicado a acompanhar os gastos do Ministério da Saúde e outro que tem focado nos gastos do Ministério da Ciência e Tecnologia. No caso da Saúde, o grupo é formado por 30 auditores que atuam em Brasília e em quatro estados e analisam remotamente os contratos emergenciais. Com a demanda ampliada, foi criada uma espécie de análise drive-thru: estabeleceu-se um prazo de 24 horas para que cada contrato seja analisado (o tempo, diga-se, é exíguo e não permite um trabalho minucioso) e, depois, caso sejam encontrados indícios de irregularidade, dê-se o aviso ao ministério.

Em um dos casos, os auditores identificaram que estavam em curso dois processos para a compra de um mesmo insumo médico. O produto era igual, mas tinha nomes diferentes. E, o pior, uma diferença de 40% no preço. Alertado, o ministério recuou da proposta mais cara. Além desse episódio, até o momento foram identificadas falhas como a falta de justificativa adequada para a compra de produtos por valores muito acima dos de mercado.

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Em outra frente, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, que tem a atribuição de atuar contra cartéis e arranjos entre as empresas para burlar a competição, tem recebido várias denúncias sobre práticas abusivas no mercado de produtos médicos, como insumos hospitalares, medicamentos e equipamentos de proteção usados por profissionais de saúde. Um procedimento foi aberto para investigar as suspeitas. Técnicos do órgão têm pedido às empresas que apresentem todas as notas fiscais que emitiram desde novembro de 2019, com o objetivo de comparar se houve mudanças bruscas nos preços e nos modelos de negócio a partir do início da pandemia.

Fora do âmbito federal, os MPs estaduais fiscalizam os gastos dos governos e das prefeituras. No Distrito Federal, por exemplo, 28 promotores de diferentes áreas estão encarregados de monitorar os gastos e as ações da administração local. O coordenador, o promotor José Eduardo Sabo, tem participado de reuniões presenciais semanais com representantes do governo para tratar das iniciativas de combate à pandemia e cobrar explicações. No Rio de Janeiro, o MP também criou uma força-tarefa. Na última semana, o grupo cobrou transparência dos gastos do governo e instaurou um inquérito para investigar a suspeita de superfaturamento em uma compra de 50 respiradores por 9,9 milhões de reais.

Em São Paulo, o estado mais afetado pela pandemia, a promotoria tem fiscalizado as despesas em parceria com técnicos do Tribunal de Contas local. “Vamos trabalhar com as pessoas que temos, não vamos colocar uma pessoa em cada prefeitura, vamos fazer a fiscalização que temos condições de fazer”, afirma o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Smanio.

Exemplos de contratos que merecem um olhar aprofundado não faltam nas diferentes esferas. Entre aqueles firmados nas últimas semanas pelo governo federal, há pelo menos duas situações em que os preços dos mesmos insumos tiveram variações significativas – e os produtos saíram mais caros para os cofres públicos mesmo quando foram comprados em quantidades muito maiores.

Um dos casos envolve o fornecimento de máscaras cirúrgicas. O governo já fechou quatro contratos com três fornecedores diferentes com preços que variaram mais de 100%. No primeiro, de 10 de março, foram compradas 500 mil unidades ao preço de 96 centavos. Já no contrato mais recente, fechado em 27 de março, foram adquiridas 20 milhões de unidades, só que cada uma saiu por 2,08 reais. Na compra de sapatilhas para profissionais de saúde, o preço unitário quase triplicou em menos de um mês. Entre as empresas fornecedoras, estão algumas que já apareceram em investigações da Polícia Federal.

Esse é o caso da Lifemed, contratada pelo Ministério da Saúde por 60,9 milhões, para fornecer leitos de UTI. A empresa é citada em um relatório da Operação Fatura Exposta, desdobramento da Lava Jato no Rio de Janeiro. A partir de e-mails interceptados, os investigadores registraram que um dos representantes da firma, que já havia sido pilhado em outros rolos envolvendo fornecedores diferentes, “permanece atuando para direcionar licitações, inserindo as especificações técnicas dos produtos em editais de licitação”, desta vez em favor da Lifemed. A Reagen Produtos para Laboratórios, contratada por 3,2 milhões de reais pelo Ministério da Saúde, também já foi alvo da PF, no Paraná.

Representantes de todos os órgãos de fiscalização e controle ouvidos por Crusoé são uníssonos em dizer que a situação atípica dos contratos exige um olhar diferente. O que antes poderia ser claramente enquadrado como superfaturamento, agora, por causa da demanda excessiva, dos preços mais elevados e da alta do dólar, não necessariamente se enquadra como tal. “Não se tem mais referência de preços como antes, não dá mais para se ter uma base”, diz Maurício Wanderley, do TCU. “A orientação para o gestor é: documente, mostre que você foi atrás, pesquisou preços, justifique, dê transparência.”

“O que pode ser feito para minimizar eventuais desvios é dar um grau de transparência enorme a essas despesas. É preciso, inclusive, que as informações sejam mais detalhadas, tem que divulgar todas as empresas que foram consultadas, as propostas e justificar a contratação de uma delas, seguindo a máxima de que a luz do sol é o melhor detergente”, afirma Gil Castello Branco, da Associação Contas Abertas. Bruno Brandão, da Transparência Internacional no Brasil, defende que uma das formas de reduzir o impacto da guerra comercial neste momento seria centralizar as compras no governo federal. “É mais fácil para se evitar os sobrepreços e os cartéis.”

O conhecido histórico brasileiro ensina que, a despeito do ineditismo da crise, é preciso redobrar a atenção e punir exemplarmente os desvios. Corruptos que se aproveitam de tragédias para se lambuzar com dinheiro público, aliás, deveriam ter a pena multiplicada. Que o passado recente sirva de lição.

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