Flickr/Louise McLarenEstátua em homenagem a Agatha Christie, em Londres

Literatura não é para “dar oportunidades”

Eu lia Agatha Christie porque era indiferente pra mim se o autor era homem ou mulher. É uma pergunta que não me ocorria
22.12.23

Vou dizer o que mais me irrita nessa polêmica da Fuvest excluir todos os autores homens das listas de leitura obrigatória até 2029: é que as pessoas que mais exigem cotas disso e daquilo para a literatura são as que menos se importam com literatura.

Essa é uma regra universal. Há pessoas que se interessam por coisas e há pessoas que se interessam pela política das coisas; isto é, há pessoas que se interessam pelas coisas em si e há pessoas que não se interessam nada pelas coisas em si, mas se juntam parasiticamente a essas coisas porque estão interessadas na recepção política dessas coisas.

Enfim, é isso: há pessoas que se interessam por coisas e há pessoas que se interessam por política. Há pessoas que se interessam por coisas e há pessoas que se interessam pelo poder que essas coisas podem dar; e esses dois tipos não se misturam jamais.

Percebi isso pela primeira vez na faculdade. Os estudantes que mais se interessavam por política estudantil eram invariavelmente os que menos se interessavam pela sua área de estudo. O estudante de letras que entrava para o ativismo não abria um livro de literatura; o de medicina que virava uma pequena estrela da política estudantil era capaz de não saber de que lado ficava o seu fígado.

Isso envolve todas as esferas de política — isto é, de poder, mesmo que seja um poder bem pequeno e mesquinho. O homem que vira presidente de um clube de filatelia é aquele entre os membros do clube que menos se interessa por filatelia; ele faz isso porque a presidência é a única posição dentro do clube em que ele não precisa só ficar mexendo com selos. Agora ele pode falar de contabilidade, locação do espaço, alvará na prefeitura, regras internas e outras coisas assim, que evidentemente o interessam mais que a porcaria dos selos.

Esse também é o caso, dez vezes o caso, dessas pessoas fazendo campanha pra que todos leiam mais mulheres.

A primeira autora que me importou alguma coisa na vida foi Agatha Christie. E por “autora” quero dizer “a pessoa que escreveu o livro”, não só “a primeira autora mulher que me importou”. Os livros dela foram os primeiros que eu queria ler por causa da pessoa que havia escrito; queria ler tudo que aquela pessoa havia escrito. Com você não foi assim? Ela foi a iniciação literária de muita gente no século 20 e, espero, mesmo neste, como J.K. Rowling para outra geração.

E por que eu queria ler tudo de Agatha Christie? Porque eu era uma criança tolerante e protofeminista? Não, porque eu estava interessado no conteúdo dos livros. Tem um crime na história? Tem um detetive? Meus amigos me falavam que a solução do crime não era completamente imbecil? E, sobretudo, na capa tinha pegadas de sangue na neve, saindo de uma janela iluminada onde vemos uma árvore de Natal e pessoas horrorizadas em volta de um cadáver? Então por que eu precisaria saber detalhes sobre o autor? Por que saber que o livro foi escrito por um mameluco que acha o Ryan Gosling “dreamy” me deixaria mais interessado, ou menos interessado, na porcaria do crime na neve lá?

Claro que as pessoas que não leem muito não pensam assim, porque pensam na literatura como um perpétuo contar de sofrimentos: esta pessoa conta o seu sofrimento, depois aquela conta, em oportunidades mais ou menos iguais — ou melhor, com muito mais oportunidades para quem acreditamos que sofreu mais, ou para quem diz mais convincentemente que sofreu mais — o que, no caso atual da Fuvest, são as mulheres. Porque parece que não estamos lendo por nenhum outro motivo além de dar aos coitados dos sofredores do mundo uma oportunidade de serem ouvidos. A visão da literatura como reunião de condôminos com muitas queixas e ressentimentos. Uma reunião de alcoólatras anônimos ou de mulheres espancadas. Um psicodrama desses em que as pessoas se alternam socando almofadas.

Eu lia Agatha Christie porque era indiferente pra mim se o autor era homem ou mulher. É uma pergunta que não me ocorria, como não ocorreria a qualquer pessoa que goste de literatura de verdade. Ler literatura não é “dar oportunidade” para alguém porque ela sofreu, não é “dar voz” para uma senhorinha humilhada que fala baixinho e ninguém deixa falar. Eu não preciso “dar oportunidade” nenhuma a Jane Austen, Emily Dickinson, Muriel Spark. Não é um favor que fazemos ao clássico quando lemos o clássico; a atenção da leitura ou das resenhas não é uma esmola que estamos dando aos gênios do passado. Essa visão condescendente e grotesca da literatura tem que acabar.

 

Alexandre Soares Silva é escritor

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  1. Isso é coisa de funcionário vagabundo. Existem funcionários públicos sérios e existem os vagabundos, aqueles que não precisam correr atrás pq o deles está garantido. Então sobra tempo pra fazer esse tipo de coisa.

    1. Por que os " serios" não expõem os vagabundos? Será q existem?

  2. Como sempre, perfeito! também li os romances policiais sem me preocupar sobre quem escreveu, a não ser para escolher outros livros do mesmo autor / autora.

  3. Muito dessas "proteções às minorias", principalmente na arte e cultura é uma ofensa as suas capacidades, como se nunca fossem capazes de se fazer valer pelo seu talento e artes, e não pela cor da sua pele, sexo ou sexualidade. É ridiculo, condescendente e humilhante.

  4. Perfeito! Utilizam o gênero para desviar o foco e retroalimentar o preconceito e a ideia de inferioridade entre as pessoas.

  5. Pare por um momento para imaginar o tipo de profissional que será formado por universidades tomando decisões por esses critérios cretinos? USP está perdida.

  6. E Zélia Gattai, Cora Coralina, Cecília Meirelles, Clarice Lispector, Ligia Fagundes Telles etc etc. O gênio e o talento não têm gênero, não tem idade, não tem cor. A palhaçada woke ainda tem muito picadeiro pra se exibir.

    1. E Rachel de Queiroz, Virginia Woolf, Patricia Highsmith, Sylvia Plath, Doris Lessing… por acaso precisaram de cotas? Será que estarão incluídas nessas leituras recomendadas?

  7. É mais uma manifestação da linha política do "coitadismo", enfim, mais uma cota ou reserva em nome do coitadismo, justificado ou não.

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