AlepeClarissa Tércio: "Acabamos de tomar o poder. Estamos dentro do Congresso"

O povo não se reconhece na Casa do Povo

O bolsonarismo alimenta-se da desconfiança em relação ao Parlamento e da descrença na democracia representativa, mas não criou esses sentimentos
27.01.23

Acabamos de tomar o poder. Estamos dentro do Congresso. Todo povo está aqui em cima. Isso vai ficar para a história, a história dos meus netos, dos meus bisnetos.”

Povo toma a Esplanada dos Ministérios nesse domingo! Tomada de poder pelo povo brasileiro insatisfeito com o governo vermelho.”

A frases acima foram divulgadas no Instagram por parlamentares que, na quarta-feira, 1º, tomam posse na Câmara. Dizem respeito – o leitor já terá adivinhado – ao ataque da Horda Canarinha aos três poderes. A primeira citação vem de um vídeo publicado por Clarissa Tércio, do PP de Pernambuco. A segunda é a legenda criada por Sílvia Waiãpi, do PL do Amapá, para acompanhar vídeos da festa bolsonarista em Brasília. Deputadas federais em primeiro mandato, as duas entram gloriosamente no Congresso carregando uma distinção que alguns veteranos da casa demoraram a alcançar: um inquérito no STF. A pedido da Procuradoria-Geral da República, Alexandre de Moraes mandou investigá-las por possível incitação à quebradeira do 8 de janeiro, entre outros crimes.

As postagens potencialmente criminosas não se encontram mais no Instagram das deputadas. Copiei os textos tal como constam nos inquéritos abertos por Alexandre de Moraes, que por sua vez reproduziu os relatórios da PGR. Há um ponto a ser esclarecido na publicação de Clarisse Tércio: a primeira pessoa do plural (“acabamos de tomar o poder”) indica que estamos diante de uma fala produzida in loco por uma participante da invasão do Congresso. O Estadão informa que a frase foi dita por uma voz feminina narrando os eventos enquanto filmava a balbúrdia. A PGR afirma que a frase foi dita pela própria Clarisse. Ela nega: diz que não estava em Brasília no domingo do putsch mambembe. Aliás, as duas suspeitas divulgaram declarações protocolares condenando a violência e o vandalismo. Sílvia Waiãpi ainda lançou na mesa a carta identitária, sugerindo que está sendo perseguida por ser uma mulher indígena.

Meu interesse não é o enrosco jurídico das deputadas novatas. O que me chamou a atenção é um ponto em comum nas publicações das duas: a ideia de que o caos promovido pela malta bolsonarista representava a tomada de poder pelo povo (A propósito: a palavra “povo” nem sequer consta no inquérito aberto por Moraes contra um terceiro deputado federal bolsonarista, André Fernandes, e é por isso que não falo dele neste texto. Espero que a gentil leitora não tenha pensado que era por machismo…)

Dizem que o Congresso é a Casa do Povo (há quem restrinja o epíteto à Câmara apenas, mas isso não muda o que quero dizer aqui). Os fanáticos de verde e amarelo que barbarizaram os prédios da praça dos Três Poderes rejeitam esse lugar comum. O povo, para eles, é uma categoria excludente, na qual só cabem direitistas e conservadores – e mesmo essas categorias são empregadas de forma muito estreita.

Ao tempo em que Rodrigo Maia era o presidente da Câmara, o ódio bolsonarista concentrava-se sobre o prédio das duas cúpulas. Nos “protestos a favor do governo” – uma invenção petista que o bolsonarismo copiou –, um boneco inflável de Maia carregando um saco de dinheiro aparecia ao lado do Pixuleco, o bonecão representando Lula em uniforme de presidiário. O sucessor de Maia na presidência da Câmara nunca recebeu essas homenagens. Arthur Lira, arquiteto genial do orçamento secreto, acertou-se bem com Bolsonaro. Os vilões do bolsonarismo passaram a ser ministros do STF, com especial destaque para Alexandre de Moraes.

Sob essas oscilações circunstanciais das antipatias bolsonaristas, porém, persistiu um desprezo generalizado pelo Congresso – e, por extensão, pela democracia representativa. Se o povo precisa tomar o poder invadindo o Congresso, só pode ser porque o poder exercido no Congresso não emana do povo. A julgar pelas postagens que lhes trouxeram problemas com a Justiça, Sílvia Waiãpi e Clarissa Tércio concordam com essa noção. Seria de se perguntar por que elas desejam ter assento em uma instituição que consideram espúria, mas elas não são as primeiras a escorregar nessa aparente contradição. À esquerda, também há aqueles que aceitam fazer parte dos rituais da “democracia burguesa” apenas porque é o único caminho que encontram aberto para a atividade política.

Pelo menos desde os tempos em que Lula deu o mote para uma canção dos Paralamas do Sucesso (o leitor jovem que perdeu essa alusão deve buscar 300 Picaretas no Spotify), o PT vem desmoralizando as instituições democráticas, inclusive o Congresso. Na versão caricata da história política brasileira repisada pelo partido e por seu líder, o país passou 500 anos nas mãos de uma elite que nunca olhou para o povo, o esse povo – todo de esquerda, ao contrário daquele outro povo imaginado pelos bolsonaristas – só ganhou lugar na sociedade e no avião quando Lula afinal chegou à presidência. Democracia só é democracia puro malte quando o PT está no poder.

A versão (ou perversão) da história patrocinada pela direita bolsonarista não é tão distinta dessa. O sinal ideológico é inverso, mas os dois campos compartilham pelo menos um inimigo: a imprensa, que uma lado chama de comunista e o outro de golpista. Em vários aspectos, o bolsonarismo exacerbou as piores práticas petistas: a retórica do “nós contra eles” tornou-se mais sectária e agressiva, o ataque à imprensa subiu vários tons na grosseria, e a oposição a um abstrato sistema político tradicional reconfigurou-se como ataque a um objeto bem palpável (mas não auditável, segundo os bolsonaristas): a urna eletrônica.

E assim foi indo até que a exacerbação exacerbou-se a seu ponto mais exacerbado: a desastrada e desastrosa tentativa de golpe em Brasília. Presos ao dualismo da guerra cultural, os bolsonaristas – a começar pelo próprio Bolsonaro, em seu tuíte no dia da destruição – tentam relativizar os eventos de 8 de janeiro lembrando episódios anteriores de invasão e depredação promovidos pela esquerda em prédios públicos da capital. É um esforço fátuo: não há paralelo em extensão e gravidade para a barbárie que testemunhamos neste ano. A Horda Canarinha deu de presente a seu inimigo a oportunidade de armar a pose de defensor da democracia. Lula só não é um ator convincente  para esse papel. Já anda fazendo manifestações de “carinho” às ditaduras de Venezuela e Cuba.

Há quem acredite que a democracia possa ser defendida com pacotes legislativos exigindo que Musk e Zuckerberg policiem o tiozão que usa as redes para extravasar sua nostalgia do Médici, ou que seja possível dispersar os inimigos da democracia só com ameaças de cana dura expressas em retórica digna de um delegado da Baixada Fluminense. Bem, estes tempos tão bicudos talvez peçam renovações da lei penal, e é claro que os envolvidos na farra golpista em Brasília precisam ser punidos nos termos da lei, sejam eles executores, financiadores ou inspiradores dos crimes. Mas nada disso basta para conciliar uma sociedade dividida ou para restaurar a confiança em uma democracia débil. A “crise da democracia representativa” de que falam tantos analistas mundo afora é uma realidade. O povo, seja lá de que lado esteja no cisma ideológico, não se reconhece na Casa do Povo. Na percepção de muitos cidadãos desprovidos de qualquer ímpeto golpista, o Congresso é só um balcão de negócios, e a atividade política resume-se a um jogo viciado para manter privilégios particulares. Essa talvez seja uma visão redutora e simplista – mas não é completamente desprovida de fundamento.

As forças políticas que hoje disputam o mando do país não criaram a desilusão com a democracia que aflige tantos brasileiros, mas insuflam e manipulam esse sentimento. Correm riscos ao mexer assim com as emoções mais inflamáveis da massa, pois o feitiço pode muito bem se virar contra o feiticeiro. Para aqueles que ainda acreditam na democracia, o perigo maior é que o feitiço funcione exatamente como o feiticeiro deseja.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Que tipo de gente protagoniza na oposição à Lula? Precisamos de líderes inteligentes, cultos e com boa formação. Bolsonaro e seus seguidores não têm esse perfil....

  2. A democracia representativa não funciona no Brasil porque ela não representa seus eleitores, mas os interesses dos eleitos. Quando a eleição resulta numa poltrona dourada e num mar de privilégios para o eleito, que deixa de ter contato e cobrança da parte de quem o elegeu, é fácil esquecer-se do eleitor e lambuzar-se com o "bem-bom".

  3. Tudo isso foi um tiro no pé! Tomara que Bolsonaro não volte para o Brasil! Sem Bolsonaro a direita brasileira pode tentar achar um nome à altura dos seus anseios.

  4. O palhaço espertalhão fez a cabeça da “” boiada “”” e tirou o time de campo, largando todo mundo ao Deus dará. O pior é que muita gente instruída engoliu a isca. FDP. Agora que ir direto para a Itália sem passar pelo Brasil

  5. Lula não engana ninguém, todo o circo da posse é bem cara dele e da Janja. Enquanto o covarde se esconde nos EUA, anistia zero, todos devem ser punidos. Inclusive 01,02,03.. todos estão envolvidos no ato de 08 de Janeiro, tem mais Aras e Lindora

  6. A “‘malta bolsonarista” acreditava e acredita que estava fazendo o melhor que podia para conduzir o seu líder de volta ao Planalto. Infelizmente usou dos piores meios que podia para tal! Violência não leva a nada! Destruição também não!

  7. "...malta bolsonarista..." !! "...horda canarinha..."!! "...fanáticos de verde amarelo..." Você não percebe que está generalizando ao extremo? Ora, ninguém era besta de ir de vermelho, então foram de verde amarelo justamente para confundir. E conseguiram, haja vista este seu artigo.

    1. Ah! Bah! Tu acreditas mesmo que alguém iria protestar contra aquele a quem apoia?

    2. Junta.. tu juntastes bem legal.. e ai contrario do cara aí de baixo.. tu é fera mesmo.. não liga pro invejoso aí de baixo que conseguiu juntar p.o.r.r.a nenhuma.. quawuaquas cas cas

    3. Seu Junta, isso é discurso de gado enganado pelos golpistas de verdade. Se toca, mano.

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