CarlosGraieb

Uma imensa Vila dos Confins

21.10.22

Há gente se comportando nestas eleições como se o Brasil fosse uma imensa Vila dos Confins.

Se você leu o livro, já imagina do que estou falando. Se não leu, a referência é ao romance de Mário Palmério, que retrata o processo eleitoral numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, em meados do século passado.

Vila dos Confins foi publicado em 1956. A trama é ficcional, os personagens pitorescos são inventados, mas os detalhes sobre a votação são absolutamente verídicos. Palmério era deputado federal e pouco antes havia percorrido o sertão para observar como a escolha dos representantes políticos acontecia. Ele produziu um relatório que acabou auxiliando na reforma da legislação eleitoral que estava em vigor. Depois, nas suas próprias palavras, o que “nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance”.

Palmério mostra como as fraudes imperavam nas eleições. O Pereirinha, um personagem escolado em todo tipo de chicana, explica como as coisas funcionam a Paulo Santos, que retornou à sua região natal, depois de anos na cidade grande, para tentar conquistar a prefeitura para o seu partido: “Sigilo! Voto secreto! Bobagens, doutor Paulo, bobagens.” 

Além das listas de eleitores forjadas, dos militantes treinados para votar várias vezes (Palmério os chama de “fósforos”) e da compra de eleitores, descreve-se o mecanismo do voto de cabresto – aquele em que o roceiro votava de acordo com as ordens de um coronel:

“Chegavam os eleitores – caminhões da União Cívica, caminhões do Partido Liberal. Chegavam e apeavam nos quartéis, acompanhados de perto, vigiados pelos cabos eleitorais. Recebiam os envelopes já preparados e seguiam para as seções, sempre debaixo de vigilância.”

É isso que muitos empresários estão querendo reviver nos dias de hoje, ameaçando seus funcionários para que eles votem no seu candidato dileto (em geral, Jair Bolsonaro). Alguns tentam ser sutis, insinuando que a empresa vai fechar ou ser obrigada a reduzir a produção e fazer demissões, caso vença o lado inimigo. Outros vão direto ao ponto.

O número de denúncias de assédio eleitoral no ambiente de trabalho cresceu exponencialmente nesta reta final das eleições. Na semana passada, 173 casos haviam sido registrados. Na terça-feira, 18, eram 447. Nesta quinta, 20, já haviam chegado a 706. Nunca se viu nada parecido.

Vem ao caso perguntar se esse fenômeno merece o nome de novo coronelismo ou coisa que o valha. Como demonstrou Victor Nunes Leal em Coronelismo, Enxada e Voto – outro clássico, desta vez da ciência política – o coronelismo era um “sistema”: ele conectava todas as esferas de poder, do lugarejo, como Vila dos Confins, à capital do país.

O que está acontecendo atualmente parece algo ainda mais primitivo. Longe de desfrutar do poder e da influência política dos coronéis de outrora, os empresários que tentam coagir seus funcionários praticam uma versão bastarda do mandonismo. É gente autoritária querendo impor sua vontade a todo custo. Ao contrário dos coronéis, eles nem sequer têm meios para controlar o que acontece na cabine de votação. Faltam-lhes os jagunços e o Pereirinha – o que torna tudo ainda mais patético.

Quem tanto falou sobre eleições limpas nos últimos anos deveria ter algo a dizer sobre essas tentativas de emporcalhar as eleições roubando de gente adulta sua autonomia. Aguardemos sentados. O Brasil resiste a civilizar-se.

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  1. Empresário não tem mais direito de dar opinião, agora isso se chama voto de cabresto? Eu só vi opiniões, provas de assédio, não vi nenhuma, denúncias qualquer um faz, prova, só quem tem a verdade, e a verdade é que se não declarar voto em certo candidato, a gente vê o inimaginável acontecer.

  2. Mais um perfeito idiota. É da cabeça desse sujeito tosco (roceiro que fala?) que veio a pérola: “quem quer votar nulo está sofrendo bullying”… acho que os amigos dos amigos devem estar em pânico com a possibilidade do Jair virar votos país afora, o que é uma grande possibilidade: lula, o ex-presidiário usou bolsas e auxílios para eleger até um poste, do que reclamam? Quando fala de improviso o ex-presidiário dá demonstrações de senilidade talvez, fora a terra arrasada que é o ideário vermelho.

  3. Esse Graieb vive em um planeta que, temos que reconhecer, está muito na moda hoje. É o Planeta Mi Mi Mi. Como disse o leitor Antonio, abaixo, o voto é secreto e nenhuma pressão pode obrigar alguém a votar nesse ou naquele candidato. Muitos de nós estão cansados dessa farsa de vitimização que hoje impera na mídia. É infantil e hipócrita. Melhor pensar nas coisas que são realmente importantes para o povo brasileiro e parar com esse coitadismo que, intencionalmente, nos distrai do que importa.

    1. É isso aí. Parlamentarismo é o sistema das verdadeiras democracias. Presidencialismo é semi-ditadura, messianismo, culto a personalidade. Claro que só funciona com uma série de outras reformas, como o voto distrital, não obrigatório, etc... Presidencialismo não é bom nem nos USA. As verdadeiras e prósperas democracias são parlamentaristas... Infelizmente por aqui nem discutem isto.. "Cada povo tem o governo que merece..."

    2. Abominável. O país carece urgentemente de um reforma política, incluindo o sistema de governo. O regime atual de acordo com a Constituição Federal é um regime híbrido. Mistura de presidencialismo com parlamentarismo. Uma colcha de retalhos dos dois. Sou a favor de um Parlamentarismo. Hoje o presidente da república se curva ao parlamento, mesmo tendo o cofre. Acontece quem tem as chaves do cofre é o parlamento. Esse regime presidencialista/parlamentarista propicia a aventura de populistas.

  4. O primeiro passo rumo ao processo de civilizar o Brasil seria a instituição do voto facultativo. Voto obrigatório é uma forma de cabresto.

    1. Na ausência do voto facultativo, me abstenho.

  5. Igual aos leitores do sem dedo. Ou você vota no sem dedo ou é expulso e não tem beneficio algum em nada e ainda é escurraçado pela chamada imprensa "livre".

  6. Calma Graieb. O povo está sabido. Agora há representação política de direita quando antes não havia. O lenga-lenga PT versus PSDB, sabemos, era esquerda contra a social democracia. Este tempo está a passar com as dores da transição.

  7. Vila dos Confins retrata bem o que é a política, só mudam os meios. Sou a favor de se aceitar o suborno e na urna votar em quem gostaria ...

  8. Quando o galo cantar o Bananão vai se civilizar...só que não, o galo foi pra panela de quem não tinha nada pra comer, e nunca mais vai cantar...

  9. Estão fazendo um grande barulho por nada . Estas ameaças não funcionam pois o voto é secreto . Nem de longe pode se comparar o sistema eleitoral de hoje com o da época de Mario Palmerio .

  10. Vivas a Graieb sempre lúcido e narrador da verdadeira história do BANANÃO. A elite não admite e o bozogado estúpido e sem causa se enfeita com o par de corno doado pelos milicos milicianos.

  11. Seria interessante dar nome aos empresários. Eles merecem ter seus nomes lembrados pelo desconhecimento do atuai sistema eleitoral. Ameaças de as coisas vão piorar não é coisa de um lado só. O ex presidente ameaçou o governador de MG pelo apoio só outro candidato, claramente. Vai ter remorso...

  12. O enredo é o mesmo da cidadezinha dos confins, a prática para colher o resultado, é muito mais sofisticado : Envolve as religiões numa guerra santa, onde existe até um "Messias" e um "Capeta. A imprensa por omissão ou por interesse, exerce seu poder para edificar essa nova ficção do império dos confins.

  13. O pior de tudo é que, para fugir do cabresto, a população vislumbra que um ditador travestido de democrata ou um democrata travestido travestido de salvador, poderão nos salvar a todos deste infortúnio sem fim. As democracias vão morrendo aos poucos cozidas em fogo baixo, com aval e beneplácito de um congresso abjeto. Parafraseando a letra da música, a democracia brasileira acaba de "encontrar a sua mais completa tradução " : ou me decifra ou te devoro. Devorou!

  14. É o Coronelismo ainda presente. Ele nunca deixou a cultura brasileira, só se modifica conforme a situação do momento. Obrigada Graieb pelo texto. Por favor, busque manter suas posições imparciais. O Antagonista/Crusoé precisam manter independência, ainda que com seu novo proprietário.

  15. Graieb, você é que tem salvado O Antagonista e a Crusoé nesse momento gravíssimo. De resto, os veículos tomam um caminho neutro, mas parcial.

    1. gostei do neutro, mas parcial; os grandes veículos de comunicação se encontram nesta situação, se dizem neutros, mas parciais, a maioria dos colunistas são petistas e a outra minoria, e com razão, querem Bolsonaro fora, não são capazes de serem imparciais, o pêndulo da balança tende a pesar para um lado, mostrando suas barbáries e do outro não se fala mais, as únicas notícias são de suspensões de propaganda eleitoral julgada como inadequada, a imprensa poderia funcionar como um livro de memória.

  16. Perfeito, Graieb. Li o livro e você fez uma excelente comparação. Políticos mandões e coronéis caprichosos sempre foram pragas por aqui.

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