DivulgaçãoGutierres Fernandes: Se o evangélico acredita que qualquer governante é um escolhido de Deus, não entendeu nada da sua própria teologia

Deus não escolhe presidentes

Jovem teólogo evangélico, Gutierres Fernandes Siqueira critica a maneira como a política vem se misturando com a fé, mas diz que um Brasil de maioria evangélica não será um 'talibã gospel'
21.10.22

Frequentador de um templo da Assembleia de Deus em um bairro de classe média de São Paulo, Gutierres Fernandes Siqueira, de 33 anos, já escreveu quatro livros sobre teologia evangélica. Quem Tem Medo dos Evangélicos? (Mundo Cristão) é diferente. Trata-se de um ensaio de leitura fluída, que procura desfazer preconceitos sobre a religião para aqueles que a observam de fora – mas também tece críticas, especialmente à maneira como os evangélicos têm se relacionado com a política. Nesta entrevista, Gutierres aborda alguns dos principais temas de seu novo livro.

 

Por que Jair Bolsonaro é tão popular entre os evangélicos?
A primeira causa é o discurso moral. O evangélico é mesmo conservador nos costumes, em tudo que diz respeito à família e ao comportamento sexual. Bolsonaro foi o primeiro político que, mesmo sem pertencer a nenhuma das igrejas evangélicas, abraçou essas preocupações. O fato de Bolsonaro ter exaltado os evangélicos é a segunda razão. Até a década de 1990, o fiel foi bastante marginalizado no Brasil. Pertencia às camadas mais pobres da população e chegou até mesmo a ser perseguido em algumas regiões do interior do Brasil. As novas gerações de evangélicos cresceram ouvindo falar dessa discriminação, percebem que ela ainda está no ar, mas também sabem que as igrejas cresceram, ganharam força, e por isso tem aquele sentimento de que “chegou a nossa hora“. Uma frase que se ouve com frequência é “Deus agora está nos exaltando“. Penso que Bolsonaro atraiu para sua órbita várias parcelas ressentidas da população. Os evangélicos também carregam um ressentimento e por isso se identificaram com o presidente.

Além de concordar com a pauta de costumes de Bolsonaro, o evangélico também é antiesquerda e anti-PT?
O antiesquerdismo entre os evangélicos é um fenômeno recente. Até as eleições de 2006 não se falava nisso. Marco Feliciano e Magno Malta, evangélicos, se davam bem com o PT. Na campanha de 2010, quando houve um grande debate em torno do aborto, começou o estranhamento. A ruptura aconteceu no governo Dilma. Ela entregou o Ministério dos Direitos Humanos a um grupo claramente favorável ao aborto e indicou para o STF ministros que também eram simpáticos a essa causa. Ficou claro, além disso, que a esquerda via as igrejas evangélicas como adversárias numa disputa pela consciência dos brasileiros. Há uma fala do petista Gilberto Carvalho, durante o governo Dilma, em que essa ideia está expressa com todas as letras. Aliás, até hoje você ouve gente lamentando que a esquerda “não tenha ocupado mais espaços na periferia antes dos evangélicos”. Isso mostra que estão perdidos, que não entenderam nada. Além desses movimentos do lado da esquerda, posso citar outros dois fatores que contribuíram para o afastamento. Primeiro, existe o fato de que o Brasil recebe muita influência dos Estados Unidos, onde a consolidação de uma direita evangélica já aconteceu faz tempo. Cerca de 80% das leituras evangélicas vêm dos Estados Unidos. Outra influência, essa local, foi a de Olavo de Carvalho. Isso, a meu ver, foi muito estranho, porque ele costumava achar que os evangélicos eram revolucionários dentro do cristianismo, e por isso os criticava. Mas a influência acabou acontecendo.

Depois destas eleições, passou a existir uma direita evangélica no Brasil?
Sim. Até agora, essa direita não existia. O ano de 2022 serve de ponto de inflexão. Se Lula for eleito, ele terá de enfrentar uma oposição evangélica, apesar do gesto de aproximação que fez nesta semana, divulgando uma carta de compromisso dirigida a esse eleitorado.

Como se manifesta o preconceito contra os evangélicos?
Já ouvi dizer que as igrejas evangélicas são a “Índia brasileira”, onde uma multidão de pobres periféricos está apinhada. Quem diz isso não está apenas querendo fazer uma constatação, está manifestando um preconceito de classe. Há também um grande ranço antirreligioso no Brasil. Acredita-se que religião, em geral, é coisa de gente burra e alienada, mas os evangélicos seriam ainda piores. Existe também muita gente que não se digna prestar atenção sequer aos detalhes mais básicos da religião evangélica – como o fato de que usamos a palavra orar, em vez de rezar. Nesse desdém também se revela um preconceito que aumenta a mágoa dos evangélicos.

Estima-se que em uma década os evangélicos serão maioria na população. Como será esse Brasil de maioria evangélica?
Será um país que vai continuar valorizando pautas conservadoras. Mas não será o “talibã gospel” que tanta gente teme, nem um país rígido e puritano como o que se encontra em algumas regiões dos Estados Unidos. À medida que a religião evangélica se expande, mais ela se fragmenta não só em número de igrejas, denominações e projetos pessoais, mas em questões doutrinárias. Quanto mais evangélicos há numa sociedade, mais a força de ideias evangélicas tende a se diluir. Por isso, creio que em breve teremos evangélicos não praticantes, como na religião católica. Serão pessoas que se identificam com valores evangélicos, têm simpatia e respeitam a igreja, mas não vivem a igreja. Acho que o Brasil evangélico será secular, não no sentido de rejeitar a religião, obviamente, mas de se beneficiar de uma convivência muito confortável da religião com a cultura que existe ao redor dela. Isso já se observa muito bem na música. Todo gênero musical tem sua versão gospel. Até a Assembleia de Deus, que é bastante rígida em relação aos costumes e condena o carnaval, tem marchinhas carnavalescas nos seus cultos.

DivulgaçãoDivulgação“O Brasil não será um talibã gospel ou um país puritano”
Há traços negativos no evangélico brasileiro? 
O conservadorismo às vezes resvala para a paranoia e o fiel acredita que todos que não são evangélicos trabalham o tempo todo para destruir o cristianismo. O evangélico também pode ser impaciente, imediatista, e isso talvez esteja ligado ao seu espírito militante, ao desejo de ver a religião se espalhar. Ao contrário do que acontece nas igrejas protestantes tradicionais, nas quais o pastor é um homem entre iguais, o pentecostal gosta de líderes carismáticos, até mesmo autoritários. Creio que no Brasil esse traço foi herdado do catolicismo, uma religião na qual os sacerdotes são ungidos. Muitos dizem que o evangélico brasileiro é autoritário. Sustento no livro que o evangélico brasileiro é autoritário não por ser evangélico, mas por ser brasileiro. Isso é algo que o país carrega desde a origem.

O evangélico é tentado a legislar para todos a partir de suas crenças?
Esse desejo existe, mas não é majoritário entre os evangélicos. Ele faz parte de um pacote que muitos rejeitam, o das teologias da prosperidade e do domínio, que são uma importação dos Estados Unidos. Essa vertente evangelical acredita que o mundo está mergulhado em uma guerra espiritual, e que o bem e o mal estão encarnados em forças políticas. Uma das igrejas que professam a teologia do domínio é a Igreja Batista Lagoinha, onde Michelle Bolsonaro disse, tempos atrás, que o Palácio do Planalto havia sido um lugar consagrado aos demônios, mas que ela o havia consagrado a Jesus com um “ato profético” – um ato religioso que procura trazer ao mundo físico a realidade espiritual.

Os evangélicos perseguem as religiões africanas?
Se você está se referindo aos ataques a terreiros de candomblé e umbanda que acontecem no Rio de Janeiro, esse é um fenômeno muito específico. O bandido religioso é um personagem antigo do mundo do crime e do tráfico carioca. Ele quer proteção antes de ir para a guerra. Em tempos passados procurava o pai de santo, hoje procura o pastor de sua comunidade. Fora desse universo, existe  uma relação ruim com as religiões afro-brasileiras, mas ela não é marcada pela mesma violência. Eu acredito que uma parte disso se deve ao fato de o evangélico ser um místico, que estranha outros místicos, como os praticantes do candomblé. É um estranhamento nascido da semelhança.

Deus escolhe os governantes terrenos, como dizem muitos líderes evangélicos?
Esse é um discurso perigoso, um discurso autoritário, que tem origem numa leitura distorcida do texto bíblico. Na Bíblia, o governante ungido por Deus é aquele que aponta para Cristo. Por isso está dito que Jesus é o “novo Abraão” ou o “novo Davi”. Ao ungir esses homens como líderes de seu povo, Deus se revelou na história humana, apontando para a chegada futura de Cristo. Se você acredita que qualquer governante é um escolhido de Deus, você não entendeu nada da sua própria teologia. Você é um fiel que precisa se reeducar.

O ponto de vista religioso deve ter um espaço nas discussões políticas?
Quando o TSE fala em coibir “abusos do poder religioso” durante as eleições, ele está explicitando um preconceito. Parte daquela velha ideia de que o religioso é ignorante e está sujeito a manipulações. Quer dizer então que não existem pessoas manipuláveis filiadas a sindicatos ou, vamos além, militando em partidos e movimentos políticos? Isso não faz sentido. A religião é um valor humano que se manifesta no espaço público. Como impedir que ela influencie nas discussões que interessam a todos? Tem mais: o evangélico paga imposto, portanto ele pode e deve se envolver na política. A questão é como. A meu ver, o envolvimento do evangélico na política deve partir da ideia bíblica de que “o maior é o que serve”. Ou seja, o meu envolvimento pessoal deve ser no sentido de servir a comunidade, enquanto as igrejas deveriam se organizar como diaconias sociais quando se aproximam da política.

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  1. As igrejas evangélicas enviaram seus representantes para a política e acolheram políticos profissionais nos seus cultos. Fizeram-no em busca de espaço na esfera do poder, tentando impor a pautas que lhe são importantes (o que é legítimo). Tendo sido a entrada na arena política uma escolha consciente, que não reclamem da agressividade da luta política.

  2. Estado e igreja devem se manter separados. Isso é o que assegura tolerância e proteção do Estado a todos, sem distinção religiosa. Mas isso não significa que seja possível separar a política da religião. Os valores da religião, a visão de mundo, fazem parte do debate político. Excluir a religião do debate é prestigiar o ateísmo, fazendo com que o Estado laico seja substituído por um Estado confessional ateu.

  3. Um dos problema dos políticos brasileiros é que eles insistem em misturar política com religião ainda mais em tempos de campanha onde há uma clara exploração da fé. Tal simbiose sempre se mostrou perigosa e assim continuará, notadamente frente a uma divisão fratricida que insiste em perdurar no Brasil, infelizmente!.

  4. Sábios eram os gregos antigos, que não faziam de sua mitologia uma religião com sacerdotes e livros ditando regras. Aliás, até desdenhavam de seus deuses e criticavam o comportamento mais q humano destes.

  5. Religião é uma escolha de foro íntimo e respeito a todas denominações deste ponto de vista. Entretanto, vejo muito mercenarismo nesse meio. Se não houvesse o dízimo, a maioria dos pastores mudaria de profissão ...

  6. Essa foi uma boa entrevista, as respostas foram objetivas, diretas e fácil de assimilar, não deixando margem pra ambiguidade. Falo isso porque vi umas aqui que nem consegui terminar, o entrevistado era cheio de depende, não é bem assim, faltou colocar a camisa da torcida.

  7. 1/2 Bolsonaro é um líder carismático, ou seja, "tocado por Deus", não porque foi eleito pela sua tribo, mas sim porque a tribo acredita que ele é um escolhido por Deus. Se na passado, o cristianismo foi fundamental para acabar com o tribalismo, a tribo bolsonarista tem o potencial de acabar com o cristianismo no Brasil. A nova tribo religiosa que se formou no Brasil, o bolsonarismo, tem o seu braço armado, tanto simpatizantes das FAs e de segurança, como também civis.

    1. 2/2 Hoje a quantidade de armas nas mãos de civis, é maior que a das forças de segurança. Essa é a tal liberdade que o Bolsonaro fala, de todos armados. Na Somália, a população pode se armar, inclusive com fuzis. Os somalis são livres para proteger suas famílias, se armando, mas na verdade, são forçados a fazer isso, por todos estarem armados. Com o advento da tribo bolsonarista, estamos caminhando para o Leviatã, a guerra de todos contra todos. Brasileiros de bem contra o Bolsonaro.

  8. Não achei que fosse ler a entrevista inteira, mas as perguntas foram muito bem feitas e as respostas são muito bem formuladas e interessantes, mais profundas do que geralmente se vê.

  9. Bolsonaro se auto intitulou ser o " Messias" contemporâneo, enviado por Deus, para cumprir uma missão de "costumes" e "econômico" para o bem da sociedade e do Brasil. Os evangélicos da auto cúpula das igrejas, por interesses pessoais e para usufruir das benesses dessa utopia, abraçaram essa ideia é contaminaram toda comunidade evangélica. Só Deus ainda não acordou para o tamanho dessa implosão do cristianismo.

    1. ESSE COMENTÁRIO ACIMA NÃO FOI REDIGIDO POR MIM, JOSÉ GERALDO DE QUEIROZ, (JOSÉ) POR FAVOR RETIRE O MEU NOME DAÍ... OBRIGADO!

  10. Acho muito perigoso o que acontece no Brasil hoje que é a mistura oportunista de religião e política para angariar votos em uma eleição. Concordo que o candidato deva procurar simpatia das comunidades mas o que está acontecendo é oportunismo de ambos os lados. E nunca devemos esquecer que o país é laico e quem entrar na presidência deve governar para todas as pessoas incluindo as que não têm religião.

  11. DISCORDO DO QUE O TEÓLOGO AI ESTÁ DIZENDO QUE DEUS NÃO ESCOLHE PRESIDENTES. EM ROMANOS 13. 1,2 PAULO ENSINA QUE TODAS AS AUTORIDADES QUE EXISTEM NO MUNDO SÃO CONSTITUÍDAS POR DEUS. ISTO PORVENTURA NÃO INCLUEM OS PRESIDENTES NOS PAÍSES NO MUNDO???

  12. Não estou conseguindo postar meus comentários. Será por que comentei dos pastores que enriquecem com os dízimos e outros artifícios?

  13. Ótima entrevista, mas acho que faltou perguntar sobre os pastores que vivem do abuso econômico aos seus fieis. Além da obrigação do dízimo ainda tem os "trabalhos". Não falo baseada em achismos mas em notícias que volta e meia surgem. Vamos lembrar dos pastores das Igrejas Universal, Mundial, Internacional etc.

  14. "as religiões são o ópio do povo", um lugar comum, mas sempre atual. Quando o mundo se desfizer das religiões será um mundo melhor.

    1. Ouso discordar, o raciocínio é o contrário, onde entra Deus o mundo melhora.

    2. Não imagino como seria isso. Um tolo tanto pode se ludibriado por um líder religioso, um político venal, ou um malfeitor carismático. O problema está na natureza humana. A educação, bem conduzida, melhorando o discernimento, pode ser um caminho mais eficaz.

    3. Precisa não só se livrar das religiões mas também se livrar da crença no sobrenatural.

    4. ONDE ESTÁ O MEU SEGUNDO COMENTÁRIO?????????????????????????

    5. O GRANDE PROBLEMA DA HUMANIDADE EM GERAL É DESCONHECER QUE SEGUIR AO SENHOR JESUS CRISTO NÃO É RELIGIÃO. SEGUIR AO SENHOR JESUS É O ÚNICO CAMINHO PARA EN CONTRAR COM DEUS! EVANGELHO DE JOÃO CAP.14, VERS. 5,6. LEIAM SE QUIZEREM SABER PORQUE SEGUIR AO SENHOR JESUS NÃO SE COMPARA COM AS RELIGIÕES EXISTENTES NO MUNDO! ASSIM SENDO QUANDO O MUNDO SE DESFIZER DAS SUAS REILIÕES E SEGUIR SÓ O SENHOR JESUS CRISTO, NÃO SERÁ SÓ MELHOR E SIM PERFEITO!!!!

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