OrlandoTosetto

Ninguém mais tem o tribunal que nós temos

21.10.22

Parei de assistir a debates políticos porque fico doente. O amigo talvez ache que eu me refiro a alguma doença psicológica, mas não é só isso: meu mal-estar é muito mais físico. Da última vez que assisti a um debate presidencial, por exemplo (foi em 1989; acho que lá estavam Brizola, Marronzinho, Sílvio Santos e Enéas), perdi três quartos dos cabelos, fiquei temporariamente cego de um olho e torto da espinha. O médico que me atendeu no pronto-socorro disse que era um caso brando de quasimoditis acutae, doença dos nervos cuja manifestação é deixar o doente parecido com o Corcunda de Notre Dame. Tomei antibióticos e uma antirrábica, e o doutor me proibiu de assistir a qualquer outro debate – inclusive mesa-redonda de futebol – pelo resto da vida, sob pena de ver a quasimoditis se transformar numa dilmoluscatitis glossolalica crônica, que não tem cura e, além dos outros sintomas, ainda deixa os olhos vesgos e aumenta muito a capacidade de falar besteira (e olha que a minha já é enorme).

* * *

Existe na língua inglesa a expressão jump to conclusions, que quer dizer “chegar a uma conclusão depressa demais, sem ter todos os fatos na mão ou na cabeça”. Bem, eu não sei quem é que previne os falantes do inglês de sair por aí saltando o brejo dos fatos curtos para a terra firme das conclusões compridas; o que eu sei é que nós, brasileiros, espanto do mundo, temos aqui uns tribunais para nos ajudar nesse tipo de escorregão.

Aliás, é impressionante a quantidade de tribunais que nós temos, não é? Afora os cíveis e criminais, aí estão os eleitorais, os de contas, os de execuções penais, os militares e, por fim, os supremos triviais e variados – todos eles agindo mais e mais sobre a nossa já limitada mobilidade, quer de palavra, quer de pensamento, quer lá do que esteja na alçada de cada corte respectiva.

E é impressionante também o conhecimento que a gente tem desses tribunais hoje em dia. Se eu, moleque nos anos 70, perguntasse ao meu pai o que é o STF, ele, talvez confundindo com SFC, responderia que era um time de futebol. Ora, eram os anos 70 e meu pai não tinha, e nem precisava ter, ideia do que fosse ou do que fizesse essa corte. Já hoje, nós não somente sabemos que é sim um time de futebol como discutimos, cada vez mais a meia voz, sua escalação, suas jogadas, suas táticas, etc. Há quem diga que evoluímos; não sou eu que vou negar.

Eu ia fugindo do assunto, entretanto. Pois o que eu ia dizendo é que somos tão sortudos, tão bem aquinhoados pelos fados, que uma corte (esqueci qual) veio nos ajudar a não ficar por aí pulando, pulando e pulando até cair com os dois pés no peito de alguma conclusão. Foi uma corte didática, data venia até preclara, usque magnânima, cheia do fumus e também do boni iuris, que veio nos alertar para o perigo de deixar que fatos verdadeiros nos levem a conclusões mentirosas.

Não sorria, amigo: antes, acompanhe o exemplo megalômano do meu caso pessoal. Estou trinta quilos acima do meu peso ideal – isso é um fato, e a verdade dele é atestada por qualquer balança de farmácia, por várias reportagens de TV e jornal, e pela cara de cachorro que tomou chuva do meu endocrinologista. Pois bem: com base nesse fato singelo, pode ser que o amigo venha a concluir que, pôxa, o Orlando é gordo, e ao alardear em cadeia nacional essa conclusão precipitada, venha a afetar a minha imagem diante dos esbeltos, aniquilar meu bom nome entre os que malham, fazer minha caveira na roda dos saudáveis, e por aí vai.

Percebeu o perigo? Notou a pirueta retórica, o twist carpado para a conclusão de que sou gordo com base tão somente na verdade meramente circunstancial de que peso trinta quilos a mais do que devia? É disso que a tal corte fala e é disso que falo eu (no meu caso; no caso dos outros, aprendi, é melhor me calar).

Veja se os Estados Unidos, aqueles atrasados, têm algo assim. Watchmen, lá, é só em filme e gibi. Veja se a Inglaterra goza de benefício tal. Veja se na Irlanda, no Canadá, na Nova Zelândia o poder público é assim benigno, assim atento, assim ligeiro, assim eficaz. Medite aí com seus botões e pare de reclamar, amigo. Caso esteja reclamando, é claro; se não estiver, muito bem, não comece: é o silêncio que aperfeiçoa as instituições. Punto e basta.

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  1. Parafraseando o saudoso Paulo Francis, ninguém é lusitano impunemente. Essas heranças malditas da “terrinha” foram aperfeiçoadas por nós, jumentos de plantão.

  2. Mas um sujeito que escreve neste blog - me esqueci o nome, Carlos, Caco, Cranco, algo assim - e que provavelmente é da turma da… (que nome se dá a uma “jornalista” que chama publicamente uma criança de 12 anos de p*t*?) deve achar pouco e bom as decisões do tiranete Cabeça Pelada, do Kojak de toga, arbítrios devidamente respaldados por sinistros (com trocadilho) que o contribuinte sustenta (e que continuará pagando todo o luxo da família deles…). “L’état c’ést moi”, mas um dia a casa cai.

  3. Ri e meditei! Se essa era a intenção do autor do texto, devo dizer que conseguiu o feito! À propósito, “Jumping to the conclusion” não tem equivalente em português, mas é o que o brasileiro faz o tempo todo… Se estudasse os fatos com empenho não teria chegado aonde chegou, num mato sem cachorro.

    1. A boa escola com bons professores faz muita falta nessa hora de interpretação da realidade verdadeira.

  4. O início dessa ditadura desses deuses de capa preta está na maneira como são escolhidos e o fato absurdo de serem vitalícios. Passou da hora desse assunto ser levado a sério.....

    1. Concordo plenamente! E além disso: Vocês sabem por que a toga é preta?... Nos tempos de Roma, fundadora da ciência jurídica, ela era branca...

  5. E nós do povo fingindo que não estamos vendo a censura que a CF88 proíbe sendo usada no varejo e no atacado pelos guardiões da dita cuja…

  6. Nossos problemas políticos são claríssimos temos uma constituição parlamentarista num governo presidencialista por escolha do povo e isto empederou demais o legislaivo e o judiciário este último que deveria ser o equilíbrio sde tornou o algoz tutor do Estado e curador do povo infeliz e inculto muitos sequer enxergam ou sabem quem é o seu algoz mas esta eleição mostrou o perigo de um bando transformar o país numa Venezuela ou Argentina e vai punir o rato nas urnas já que as cortes não o faz.

  7. Boa indicação pra já treinarmos a sutileza de comentários, o duplipensar ou fazer como os russos, depois de décadas do regime igualitário: pensa uma coisa, fala outra e faz um terceira.

  8. Pois é, Orlando, aqui a lei é homologada pela autoridade de quem a lê e aplica a seu bem querer. Como todos os reis, digo, magistrados, fazem de si próprios um oráculo de sabedoria, não existe lei que não possa ser interpretada para seus propósitos particulares.

  9. Pelo menos é divertido o momento que leio textos assim, carregados de ironia e sarcasmo. O triste é que 5 minutos depois volto para o mundo real e leio o artigo "TSE julga neste sábado como ficarão os direitos de resposta de Lula e Bolsonaro". O que vai adiantar? Qualquer resultado do TSE não creio que mude alguma coisa. Por isso. Por isso Orlando, peço que convide outros humoristas (sarcásticos e irônicos) aqui para a Crusoé, para aliviar a semana.

  10. Exato meu caro Tosetto, no que diz respeito a justiça, o Brasil é m país avançadíssimo, que outro país tem tantos tribunais e zela tão de perto para que o eleitor tenha a opinião correta?

  11. Sim, meu caro escriba, é possível contar um monte de mentiras falando só verdades(meias verdades). Basta contar a parte da verdade que corrobora a narrativa que se quer é omitir a parte da verdade que a contradiz.

  12. A única coisa que tem importância neste país é o futebol. Para dar certo , bastaria incorporar um próprio time de futebol. Resta- nos decidir: seria um time contra o mundo um time representativo de cada estado brasileiro, contra o mundo? Teríamos que criar nomes novos aos times. Se for apenas um, Brasil. Contra o mundo. Assim, conseguir- se- á abafar a tristeza que derrubou a alegria que existia neste país. O futebol , neste país, é o salvador da pátria.

  13. Achei cômica a maneira como o autor quis forjar um texto criativo para criticar de forma sutil as recentes decisões do TSE. Pena que um dos exemplos contextualizados também é execrável (assim como distorcer fatos, usá-los p/ humilhar, atacar usando suposta verdade sem que o outro tenha o direito ao contraditório etc.) e pode dar um processo na justiça, apesar de não ser crime. Acredito que o autor concorda que seja assim e como vítima de gordofobia poderia buscar seus direitos nos 300 tribunais.

  14. O autor precisa entender que em tudo existe a exceção: existem gordinhos saudáveis e esbeltos doentes. Existem esbeltos, que têm diabetes. Os esquálidos, também, têm problemas de saúde, como, à desnutrição.

  15. É o silêncio, desde que se tenha o espaço de uma coluna pra escrever, numa revista respeitável que alcançará muitos leitores. O que é pra pouquíssimos. Não gostei.

  16. Que perda de tempo ler esse artigo. Muito bla bla bla exibicionista. Cada país tem a Justiça que tem e nem todos vivem o momento que vivemos. No dia 6 de janeiro de 2021 vimos nos EUA algo que se acontecer no Brasil será trágico. Lá as forças armadas não se misturam com a política como aqui. O articulista deveria se dar conta que o jogo marcado para dia 30 nas urnas pode ser uma revanche, 45 anos depois, de um jogo que terminou Geisel 1 x 0 Frota.

    1. Dito isso, sigo o articulista. Me calo e passo a observar. Punto e basta.

    2. Pasmo Parvo, que generais? Um era contra o outro a favor. Não estamos falando de democracia. A pergunta pra voce é que Republica tem as FFAA apitando o jogo? Isso aqui já é um Resmilitaris (pra agradar o articulista)?

    3. Então, como o momento é gravíssimo, a censura é necessária? Mas não era isso o que diziam os generais? Grandes democratas, vocês.

    4. Não, Mara, Lula e Bolsonaro não são a mesma coisa. A criatura do Golbery, provavelmente instruído à estimular o debate resolveu ser o dono dele. O outro nós conhecemos bem, quer retroceder 45 anos. A questão é: quantos árbitros apitarão esse jogo? As FFAA já disseram que a súmula será entregue ao final. Isso, sim, só o Brasil tem.

    5. Concordo. A imprensa engracadinha ainda não se deu conta que o momento é gravíssimo e inédito no Brasil. Há uma falsa simetria histórica e política. Bolsonaro e Lula não são a mesma coisa.

  17. Até que enfim, a Cruzoe trouxe um escriba sagaz, capaz de fazer um texto com cara de sexta-feira e sem mencionar uma única vez, a palavra (sic) bolsonaro (minúsculo mesmo).

    1. Orlando o texto está ótimo, a vacina anti-rabica e a “dilmo o q mesmo? Foram o maximo. Essa maldita Justiça brasileira q custa 100 bilhões e cada vez mais nos persegue, demora anos, solta criminosos e ainda debocha. A nossa justiça e pior do q os políticos.

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