Columbia Pictures/ReproduçãoCena do filme "O nome da rosa", de 1986: Somos seres opacos e nossos reais interesses e gostos estão completamente escondidos para os outros, mesmos os mais próximos

A verdade na análise política

Conclusão feita por protagonista de "O Nome da Rosa" chama atenção para a delicada interação entre o fenômeno observado e o observador
03.05.24

Há livros que não se pode ler deitado. A frase, de um antigo professor, pode ser aplicada ao romance O Nome da Rosa, do acadêmico italiano Umberto Eco, que usa a investigação de assassinatos em série em uma abadia na Idade Média para desfilar seu profundo conhecimento sobre o processo de consolidação da Igreja Católica, em especial sua interação com o poder secular e com seus movimentos internos de contestação – no livro, o embate teológico mostra o grande abalo representado por São Francisco de Assis e a questão da pobreza sobre o papado.

O protagonista é um frade inglês chamado Guilherme de Baskerville, nome propositadamente escolhido para fazer uma referência bem-humorada ao detetive Sherlock Holmes, do escritor Sir Arthur Conan Doyle, que atendia no número 221 da Baker Street. O assistente de Sherlock se chamava Watson e o par de Guilherme atendia por Adso, um noviço alemão.

Guilherme é convocado para resolver um suicídio mal esclarecido ocorrido em uma imponente abadia no norte da Itália. Decifrar o mistério era importante porque, nos dias seguintes, o local receberia um encontro entre enviados do papa e franciscanos para tentar endereçar a solução de uma divisão teológica que estava gerando fragmentação e violência. Durante a investigação, outras mortes misteriosas ocorrem e forçam Guilherme a testar toda a sua capacidade dedutiva.

Tentando não dar spoiler, embora o livro já tenha 44 anos de sucesso na praça, Guilherme se encontra no final da trama com o responsável pela série de mortes. Em uma conversa face a face, típica desse tipo de romance, na qual o bandido esclarece seus motivos e o mocinho se gaba dos insights que o levaram à verdade, Guilherme revela, no entanto, estar constrangido.

Embora ele tenha chegado ao epicentro dos crimes, confessa que atingiu seu objetivo por acaso e que o caminho que ele perseguia, mesmo dando no criminoso, estava completamente equivocado. Nesta passagem, após escutar suas explicações, o vilão diz: “Não te acompanho… Estás orgulhoso por me mostrares como, seguindo tua razão, chegaste a mim e, no entanto, estás me demonstrando que chegaste aqui seguindo um raciocínio errado. O que pretendes me dizer?”. E o herói responde “A ti, nada. Estou desconcertado, eis tudo. Mas não importa. Estou aqui”.

Para piorar, o vilão revela a Guilherme que só teve a ideia de uma estratégia para acobertar suas ações após escutá-la da boca do próprio frade/detetive quando este explicou sua teoria para seu assistente. Ou seja, Guilherme não apenas estava fora da trilha como, ao interagir indiscretamente com Adso, deixando outros ouvirem seu comentário, incluindo o vilão, alterou o curso dos eventos.

A autocrítica feita por Guilherme expõe o caminho tortuoso da busca pela verdade, seja para desvendar um crime, seja para analisar a política. Em especial, ela chama atenção para a delicada interação entre o fenômeno observado e o observador.

Faz parte da vida do analista pressupor o objetivo inerente a cada ação do político e, quanto mais bem-sucedido é o sujeito, mais crédito estratégico se dá a ele. Por exemplo, nesses dias, um jornalista cacifado de Brasília fazia uma reflexão sobre Lula. Ao analisar uma aparente ação equivocada do presidente, ele dizia que, por cuidado, não o criticaria “porque aprendeu a respeitar o instinto de sobrevivência política” do presidente e que, se ele fez A ou B, mesmo que pareça um erro, deve-se ter cuidado porque “tem coisa aí”.

O fato, um possível erro ou não de Lula, é alterado pela percepção que o jornalista tem dele. Provavelmente, a nota que sairá no jornal sobre o evento traduzirá mais o imaginário do repórter sobre o presidente do que o ato em si.

O espaço da subjetividade acontece por uma razão da natureza humana descrita seminalmente por Thomas Hobbes em O Leviatã. Somos seres opacos e nossos reais interesses e gostos estão completamente escondidos para os outros, mesmos os mais próximos. Quantas vezes já não escutamos em fofocas sobre a vida dos outros a frase “poxa, eu estava casada com ciclano há 30 anos e não o conhecia de verdade”.

Esse limite essencial faz da análise política, inevitavelmente e mesmo que escorada em fatos, um exercício dedutivo. A interpretação de eventos é a base da atividade, mas também é o seu principal problema porque é difícil discernir em um texto ou comentário o que tem do acontecimento e o que tem do observador. O extremo disso é a própria ideia de narrativa, tão na moda nesses dias, na qual mais importante do que a realidade é o que se conta dela.

Como o que se narra pode interferir no que é, há uma inclinação quase irresistível para o pecado da falta de isenção. Considerando que o observador também tem seus interesses e que ele sabe que o que ele escreve pode alterar o curso dos eventos, como evitar a tentação de tentar ele também ser protagonista da trama?

Isso significa que tudo o que se produz é inútil? Não. Ao consolar seu mestre, Adso diz que, “mesmo imaginando ordens erradas, haveis, no entanto. encontrado alguma coisa”, ao que Guilherme responde que as “únicas verdades que prestam são instrumentos para se jogar fora”. O que isso significa? Essa charada fica para você resolver, caro leitor.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor da VectorRelgov.com.br

 

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  1. Na minha opinião luladrão é um ex presidiário que foi descondenado por interesses nada republicanos de uma elite política podre. Por outro lado, “ciclano” no sentido de um sujeito, deveria ser corretamente corrigido por um redator ou revisor. Alguém casada 30 anos com ciclano teria morrido, exceto se fosse outro polímero da química orgânica.

  2. Interessante, considerando o potencial do protagonista rever suas práticas no caso de alguém deduzir suas reais intenções não republicanas

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