Adriano Machado/Crusoéxxxx

Ele queria ser Favreto

O imbróglio da liminar de Marco Aurélio Mello que quase libertou Lula e mais 169 mil presos no último dia de expediente do Judiciário. Assim como no caso do desembargador do Paraná que tentou uma pirueta semelhante em um domingo de julho, não deu certo. Mas abril está aí
21.12.18

O ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello calculou com precisão. Esperou o último dia do recesso para tomar, sozinho, a decisão de soltar 169 mil presos que cumprem pena em execução provisória pelo país afora. O mais famoso deles, Lula, recolhido desde 7 de abril a uma cela na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. A decisão foi proferida dentro de uma ação que o PCdo B, principal aliado do PT, ajuizou ainda em abril, pedindo que o Supremo declarasse inconstitucional a prisão após condenação em segunda instância. Pela manhã, Marco Aurélio encaminhou o despacho, que normalmente grava em áudio, para que seus auxiliares tomassem as providências necessárias para a publicação. Depois, participou normalmente da última sessão da corte com os colegas ministros, que acabou por volta das 12 horas. Parte deles subiu pelo elevador privativo para um almoço de confraternização no segundo andar do prédio na praça dos Três Poderes. Comeram carne, arroz e salada. Trataram de amenidades. Marco Aurélio nada falou sobre a bomba que estouraria nos instantes seguintes. Os ministros deixaram o local juntos, por volta das 14 horas, mesmo horário em que o texto da liminar subiria no sistema digital do Supremo. Não havia mais tempo para que o colegiado revertesse a decisão.

O teor do despacho do ministro mexeria com os ânimos do país. Afinal, ele continha a resposta para a pergunta de 1 milhão de dólares que muitos ainda ouvirão nas festas de fim de ano: afinal, quando Lula vai ser solto? Tivesse prevalecido a decisão de Marco Aurélio, o ex-presidente teria sido solto ainda na quarta. O PT não sabia o que fazer. Uma parte ficou eufórica com a possibilidade de Lula voltar à ativa em um momento em que a legenda vem perdendo protagonismo. A presidente petista, Gleisi Hoffmann, convocou uma reunião de emergência em Brasília na qual determinou que, primeiro, fosse protocolado imediatamente um pedido de soltura de Lula na vara federal de Curitiba responsável pela execução da pena do ex-presidente. A ordem foi cumprida com presteza, menos de uma hora após a decisão de Marco Aurélio. A segunda orientação, que mais tarde se mostraria tão ou mais inócua, foi para que petistas se dirigissem à capital paranaense para pressionar a Justiça a cumprir a liminar.

Outra parte do petismo, contudo, preferiu a cautela. Essa tinha na memória a trama rocambolesca levada a cabo por companheiros em julho passado. Foi quando três deputados do partido aproveitaram o plantão judiciário para, em pleno domingo, apresentar um pedido de soltura de Lula a Rogério Favreto, um desembargador amigo, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. A liminar foi concedida, mas acabou derrubada pelo relator da Lava Jato no próprio TRF. Foi o que aconteceu também com o despacho de Marco Aurélio. Quase seis horas depois de a decisão vir a público, já às 20 horas de quarta-feira, o presidente do STF, Dias Toffoli, suspendeu a decisão do colega.

Agência BrasilAgência BrasilDias Toffoli suspendeu a liminar do colega ainda na noite de quarta-feira, mas tema irá ao plenário em abril
A comparação entre os dois episódios é inevitável. Em ambos, os magistrados tentaram, de forma isolada, monocraticamente, driblar o veredicto colegiado dos tribunais de que fazem parte. Em ambos, o desfecho foi uma canetada de um superior derrubando as decisões. Mas o ocorrido em Brasília se reveste de maior relevância porque expôs ainda mais a já debilitada imagem da mais alta corte do país. Não é de hoje que o Supremo vem sofrendo severas críticas da população, uma condição outrora exclusiva de seus vizinhos na Praça dos Três Poderes — o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto. São muitos os episódios que, de alguma forma, contribuíram para ampliar o descrédito. Em 2016, Ricardo Lewandowski operou para que a presidente cassada Dilma Rousseff não perdesse seus direitos políticos como consequência do processo de impeachment. Já neste ano, Luiz Fux liderou a barganha em torno do auxílio-moradia pago a juízes e integrantes do Ministério Público. O ministro aceitou derrubar o benefício em troca da sanção, pelo presidente Michel Temer, de um reajuste que, em tese, supriria as ditas defasagens salariais das duas carreiras. O que parecia um acesso de sensibilidade ante o clamor dos brasileiros por menos privilégios nas rodas do poder durou pouco. Bastaram alguns minutos para que, na sessão seguinte do Conselho Nacional de Justiça, presidido por Dias Toffoli, o auxílio acabasse voltando à cena – sob o argumento de que, agora, as regras serão mais rígidas.

A presepada de Marco Aurélio deixou claro, como se isso ainda fosse preciso, que o Supremo, a despeito de ser um colegiado, é um órgão cada vez mais suscetível aos humores individuais de seus integrantes. São onze ministros, onze ilhas, onze vaidades. Marco Aurélio tomou a decisão dois dias depois de Dias Toffoli ter agendado para 10 de abril de 2019 uma sessão para julgar exatamente a questão das prisões em segunda instância. Marco Aurélio não teve pressa para decidir nos oito meses que se passaram desde o pedido do PCdoB, mas alegou urgência para não esperar a sessão de abril. Se efetivada, a liminar derrubaria provisoriamente o entendimento que prevalece no tribunal desde outubro de 2016 — e sobre o qual o STF já se debruçou outras três vezes nos últimos dois anos, sempre prevalecendo a tese de que condenados em segunda instância podem, sim, cumprir imediatamente suas penas. “A decisão já tomada pela maioria dos membros da Corte deve ser prestigiada pela Presidência. E é por essas razões, ou seja, zeloso quanto à possibilidade desta nova medida liminar contrariar decisão soberana já tomada pela maioria do Tribunal Pleno, que a Presidência vem a exercer o poder geral de cautela atribuído ao Estado-Juiz”, escreveu Toffoli na decisão que barrou o despacho de Marco Aurélio. Além de Lula, a liminar poderia colocar nas ruas, no apagar das luzes de 2018, nada menos que 20% da população carcerária do país.

A Crusoé, momentos após a decisão, Marco Aurélio se irritou quando indagado sobre o motivo de ela ter sido proferida no último dia antes do recesso. “O que é isso, rapaz? Que pergunta descabida. Não sei, você deve estar supondo outras coisas que eu não posso imaginar, porque eu não sou seu analista”, respondeu ao repórter Igor Gadelha. Com alguma dose de ironia, o ministro contou que tinha acabado de sair do tal almoço com os colegas. E disse que aproveitou a ocasião para se aconselhar. Sobre o quê? “Não sei, a vida em geral.” Se ele se aconselhou, não se sabe. Mas sobre a liminar, não emitiu uma palavra sequer.

Da prisão ao truque

O episódio da liminar também mostrou que, apesar de o país ter saído há pouco de uma eleição que varreu do mapa dezenas de políticos envolvidos com corrupção, a Lava Jato continua sob permanente ataque. Principalmente de quem deveria defendê-la. Logo depois da decisão de Marco Aurélio ser publicada, o ex-diretor da Petrobras Renato Duque e o empreiteiro Sergio Cunha Mendes, da Mendes Júnior, entraram com pedidos de liberdade tendo por base o entendimento do ministro. Em entrevista convocada às pressas em Curitiba, integrantes da força-tarefa da operação disseram que 35 pessoas condenadas em segunda instância em processos decorrentes da operação seriam soltas se a vontade de Marco Aurélio vigorasse. “Estamos diante de uma decisão que põe em risco a existência da Lava Jato”, disse o procurador Deltan Dallagnol. Do rol dos 35 faziam parte Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, Jorge Zelada, ex-diretor da área internacional da Petrobras, e o ex-empreiteiro da OAS Léo Pinheiro.

Toda essa turma, com mais algumas dezenas de milhares de presos menos célebres, pode ser solta em abril de 2019, quando a corte voltar a debater o assunto por determinação de Dias Toffoli. É sabido que o presidente do Supremo é contrário à prisão em segunda instância. Nesta quarta, ele só revogou a liminar porque ela afrontava uma decisão colegiada da corte. A Crusoé, uma pessoa próxima do presidente do STF disse que, logo depois de tomar conhecimento do despacho de Marco Aurélio, Dias Toffoli já estava decidido a derrubá-lo. O presidente do STF considerou a conduta do colega despropositada, principalmente pelo fato de já haver uma data para o assunto ser discutido. Isso, repita-se, apesar de concordar, no conteúdo jurídico, com os argumentos de Marco Aurélio. A suspensão da decisão, portanto, não deve ser lida como um gesto favorável à operação Lava Jato.

Dias Toffoli integra no STF o grupo liderado por Gilmar Mendes, que vem tentando impor limites à operação a partir da revisão de alguns dos instrumentos que a sustentam. No julgamento previsto para abril, com o próprio Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, já são quatro votos certos em favor dos condenados. A eles deve se juntar o decano, Celso de Mello, que tem posição histórica contrária à prisão antecipada. Do outro lado, Edson Fachin, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, todos mais alinhados com as demandas da Lava Jato, devem rejeitá-la. O voto decisivo deverá vir, para variar, de Rosa Weber. A alternativa que vem sendo construída pelo próprio Toffoli é a de que o Superior Tribunal de Justiça seja a última instância antes do cumprimento da pena. Gilmar é simpático à ideia, mas os outros ministros não deram pistas se irão aderir. Se prevalecer esse entendimento, as chances de Lula deixar a prisão diminuem. O relator da Lava Jato no STJ, Felix Fischer, já rejeitou um recurso do petista. Essa decisão aguarda uma análise definitiva da 5ª Turma da corte. A tendência é que o entendimento de Fischer seja mantido. A alternativa para Lula seria, então, um novo recurso ao STF. Até lá, ele seguirá na cadeia.

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