Flickr/Geoff LivingstonUltrassom: lei de Maceió pede que mulheres vejam imagens como essa

Os batimentos cardíacos do feto

Os problemas das leis municipais que interferem nas hipóteses legais de aborto
12.01.24

Em dezembro de 2023 foi aprovado, na Câmara Municipal de Vereadores de Santa Maria, Rio Grande do Sul, um projeto de Lei que contempla a escuta de batimentos cardíacos de fetos em mulheres que ponderam sobre a interrupção da gravidez. Em Maceió, entrou em vigor a Lei nº 7.492, que faz com que mulheres que optem por realizar aborto legal na rede pública do município tenham que assistir a vídeos e visualizar imagens com fetos.

Esses são apenas dois exemplos das diversas normas municipais em processo legislativo ou recentemente concluídas, com esse teor, no Brasil.

O frenesi em torno do tema do aborto no Brasil é incompreensível, considerando que o país já possui uma legislação que criminaliza a prática. No atual contexto jurídico, a interrupção da gravidez é permitida apenas em três situações específicas: em casos de estupro; quando há risco de vida para a mulher; e nos casos em que o feto é diagnosticado como anencéfalo.

Portanto, todas as medidas que pretendem impor às mulheres escutar os batimentos cardíacos de fetos ou olhar fotos possuem requintes de crueldade. Experiências como as previstas nessas iniciativas submetem as gestantes que foram estupradas, estão sob risco de vida ou estão gerindo um feto anencéfalo a experiências ainda mais traumáticas.

Também em dezembro de 2023, Kate Cox, uma americana residente no Texas, com 31 anos, teve de sair do seu estado de residência para poder dar termo à sua gestação. Aquela foi uma decisão difícil para ela — que planejou ser mãe e queria a todo custo manter a gravidez.

Mesmo diante deo risco de vida e sendo inevitável a inviabilidade do feto, Kate precisou viajar para outro estado americano para realizar um procedimento que já estava lhe afligindo amargamente: interromper uma gravidez desejada e planejada.

Em um caso como o de Kate, o trauma ficaria ainda maior se ela fosse confrontada com o som de batimentos cardíacos fetais e a imagem de um feto que jamais poderia sobreviver.

É evidente que a vida já formada da mulher se sobrepõe à “iminente vida” de um feto ou embrião. Essa opinião não é somente minha, como também da filósofa Ayn Rand. Para ela, quem não compreendia e aceitava o direito das mulheres de escolher, pouco ou nada entendia sobre direitos individuais. Afinal, uma gravidez, naturalmente, põe em risco a vida da mulher e nenhuma deveria ser obrigada a enfrentar esse risco a contragosto.

Além dos casos como o de Kate, existem os de mulheres que à revelia estão grávidas, ou seja, foram vítimas de estupro. Nessas situações, o trauma e a tortura de exigências como as impostas em Santa Maria e Maceió são ainda maiores. Agrava-se ainda mais a injustiça ao submetê-las a um processo que irremediavelmente reaviva traumas profundos.

Ao impor a escuta de batimentos cardíacos de fetos ou a exposição de imagens impactantes, tais dispositivos legais não apenas violam a privacidade e autonomia das mulheres, como as expõem a situações de intenso sofrimento psicológico. É crucial reconhecer que, ao forçar essas práticas, estamos, na verdade, promovendo uma forma de tortura — expressamente proibida na Constituição Brasileira.

Um dos pontos centrais de contestação reside no direito constitucional à privacidade e à autonomia. A Constituição garante o direito das pessoas de tomarem decisões relacionadas à sua saúde e ao seu corpo, sendo a escolha sobre a continuidade ou não da gestação uma decisão altamente pessoal — sobretudo nos casos já previstos na legislação brasileira. A imposição da escuta de batimentos cardíacos pode ser interpretada como uma tentativa de influenciar a decisão da mulher, indo de encontro ao princípio da liberdade individual consagrado na legislação.

Ao vincular a permissão para a interrupção da gravidez a condições específicas, a legislação já reconhece a complexidade dessas situações e a necessidade de respeitar as decisões individuais das mulheres. No entanto, ao adotar práticas coercitivas e degradantes, as recentes leis municipais demonstram uma preocupante falta de reconhecimento da dignidade feminina.

Além de inconstitucionais sob ponto de vista material, uma vez que violam os princípios constitucionais, tais projetos também incorrem em inconstitucionalidade formal. Isto é, em virtude de a matéria em questão ser de competência federal, a União é a entidade federativa detentora da competência para legislar sobre o tema. Ao estabelecerem normas divergentes em âmbito municipal, essas leis não apenas desconsideram a hierarquia normativa do ordenamento jurídico, mas também desafiam a autoridade legal estabelecida pela Constituição Federal.

A inconstitucionalidade formal se manifesta como mais um aspecto crítico dessas legislações, ressaltando a importância de uma abordagem coesa e alinhada com o sistema legal vigente. Essas leis municipais não apenas falham  em reconhecer o direito à integridade física e mental das mulheres, mas perpetuam uma cultura que normaliza a violência contra elas.

 

Izabela Patriota é advogada e diretora de Relações Internacionais no LOLA Brasil

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  1. O curioso é que os que se dizem defensores da vida para proteger o feto parecem não estar se preocupando com a vida da mãe nos casos em que há risco pra ela.

  2. Cara Izabela, desculpe mas tenho que discordar de sua postura. A vida do feto não pertence à mãe, e ninguém tem o direito de tira-la, ainda mais de um ser inocente, que não teve culpa de ter sido gerado por um ato de violência. O bebê anencéfalo tem a mesma dignidade de todo ser humano, e mesmo que viva poucas horas ou dias após o parto, a família pode e deve aproveitar cada segundo da gestação, dispensando todo o carinho e atenção aquela criança, fruto do amor. Deus te abençoe, abraço

  3. Curioso como nenhum dos ditos "pró vida" se preocupam com a vida da mãe, que nos casos previstos em lei foi, no mínimo, submetida à humilhação de um estupro, precisaria decidir entre talvez morrer ou dar à luz a um bebê sem chances de vida. Pensam apenas em aliviar suas consciências e ficar de bem com seus "deus". Cuidem de suas próprias vidas, se são contra, eduquem os seus sobre isso e sejam felizes. Não defendam imposição de tortura psicológica a uma mulher já fragilizada.

  4. Estou em perfeito acordo com a legislação brasileira sobre o aborto. É dos poucos pontos de legislação que creio estar o Brasil numa posição muito racional e correta. E, claro, sendo o aborto proibido aqui com exceção das duríssimas condições em que ele é permitido, não há motivo para sujeitar a mulher ao dano adicional de ter de ver/ouvir a vida que ela quer abortar. Imagina o que será coagir uma mulher a dar a luz a uma criança sem viabilidade (anencéfala) ou vítima de um estupro? é bárbaro!

  5. O nível desses vereadores de Santa Maria lembra o episódio jocoso do vereador de uma cidade que, devido a vários desabamentos de prédios que haviam ocorridos, propôs a revogação da Lei da Gravidade. Um colega se opôs, alegando que a lei era federal.

  6. Não há diferença entre os argumentos pro aborto. Todos ignoram sumariamente e propositalmente a vida intra útero.

  7. “Uma gravidez impõe um risco à vida da mulher e não deveria ser levada a contragosto”. Argumento fraquíssimo. O aborto também impõe risco de vida, assim como qualquer intervenção médica.

  8. …de que a partir da união entre 2 materiais genéticos já se forma um outro ser vivo Completamente Distinto dos seus genitores e que só não se tornará um ser vivo viável caso tenha o processo naturalmente ou BRUTALMENTE interrompido. Aborto provocado é sempre interrupção da vida.

  9. A imposição de visualizar um US é uma estratégia autoritária, sem dúvida, mas principalmente burra, pois dá munição a essas narrativas superficiais e evitam o tema mais importante que é a Vida do Ser no Interior do Útero. Usar uma filósofa como única fonte para argumentação é muito frágil. Posso usar outro, nesse caso: leia Contra o Aborto de Francisco Razzo e entenda todas as perspectivas filosóficas de porque a dignidade de uma mulher “formada” não é superior a de um feto em desenvolvimento. Alie-se a isso a certeza cientifica de que a partir da uniao entre 2 matérias

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