Captura de tela do "breaking news" da CNN sobre o naufrágio do Titanic, em 2014; só vendo para crer

O jornalismo morreu, mas passa bem

13.10.23

Qual foi o exato momento em que o jornalismo morreu? Eu sei o ano: foi em 2014, quando a CNN conseguiu meter um “breaking news” numa reportagem sobre os 102 anos do naufrágio do Titanic (juro por Deus — os caras nem se deram ao trabalho de esperar que a efeméride chegasse a um ano redondo). Adotei uma visão dostoievskiana da coisa: se um acontecimento mais velho que a Primeira Guerra, a penicilina e a sua avó, não necessariamente nessa ordem, pode ser classificado como “últimas notícias”, então tudo é permitido.

É claro que essa é uma data tão arbitrária quanto qualquer outra: trata-se de um processo, certamente antigo, mas bastante acelerado por este mundo de redes sociais e WhatsApp, pelo qual os consumidores de notícias só querem consumir aquilo que reforce o que eles já pensam — se o fato noticiado não se encaixar na convicção prévia, azar o dele. É o bonde da dissonância cognitiva sem freio, de que já falei em outras colunas. No começo, parecia tudo muito lindo no mundo de possibilidades da internet: cada um pode ser seu próprio veículo de imprensa, não dependemos mais das seis ou sete famílias manipuladoras que dominam a mídia, viva a democracia, chupa, Rede Globo, e piririm e pororom. Na prática, virou uma idiocracia de tiozões do zap (Umberto Eco falou, Umberto Eco avisou).

De vez em quando, alguns colegas de profissão que admiro muito conseguem dar uma descarga elétrica no cadáver e fazê-lo sair por aí, como a criatura do doutor Frankenstein: ainda há grandes reportagens sendo feitas, na “mídia tradicional” ou fora dela. E, toda vez que a desolação da paisagem jornalística me deprime, tento me consolar com o que o grande poeta W.H. Auden disse em entrevista há uns 50 anos: “Em casos de injustiça social e política, só duas coisas são efetivas: ação política e reportagem jornalística honesta sobre os fatos. As artes não podem fazer nada. A história social e política da Europa teria sido a mesma se Dante, Shakespeare, Michelangelo, Mozart etc. nunca tivessem existido”. Mas continua sendo um deserto cercado de clickbait por todo lado.

Uma vez que é assim, só me resta tentar extrair algum humor da desgraça (e aviso desde já que esta coluna, que pretende ser de humor, não falará da tragédia em curso no Oriente Médio; há um limite para as desgraças que podem ser suportadas com leveza). Arrisco dizer que desde os tempos da Acta Diurna, na Roma antiga, mulher pelada é uma isca de cliques infalível; na imprensa britânica, por exemplo, as moças de topless na página 3 dos tabloides são uma tradição de décadas, que aqui no Brasil o Notícias Populares copiou por um tempo. Portanto, o jornalismo onanista, que vou chamar aqui de jornanismo, é um costume anterior ao “advento da internet”. Mas como preservar esse animal de eras pretéritas num mundo que condena o sexismo e exige a desconstrução?

A solução encontrada pelos sites que não podem se dar ao luxo de dispensar os cliques que o jornanismo propicia foi adotar uma linguagem que nunca nenhum falante de português brasileiro usou. Sugiro que vocês façam a experiência de procurar no Google, entre aspas, as expressões “denota corpaço”, “explana beleza” e “sobe o clima”: vão encontrar um monte de fotos de celebridades e subcelebridades em variados estágios de pouca ou nenhuma roupa. Por que o jornanismo não fala como gente normal, que diria algo como mostra o corpaço, exibe sua beleza e esquenta o clima? Ah, porque aí fica vulgar, né, Deus nos livre de acharem que a gente objetifica mulheres e estimula o voyeurismo do leitor, ainda que seja 100% isso. O pior jornanismo é o enrustido, que não se assume.

Acrescento que a vida anda dura (uepa) também para os veículos jornanistas, que precisam enfrentar a concorrência desleal do OnlyFans ou mesmo do Instagram e seus usuários — até a Playboy, que muitas vezes fazia bom jornalismo ali no meio dos outros estímulos oferecidos pela revista, já dançou nessa faz algum tempo. Ainda assim, vivemos num mundo que favorece muito mais o jornanismo e outras modalidades de autossatisfação do que o jornalismo, atividade careta que só dá notícias desagradáveis. Paciência: para quem insiste na profissão, só resta tentar manter o modo “os fantasmas se divertem” ligado.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Houve competidores fortes desta vez. Pensei em dar o troféu da semana ao glorioso Nicolás Maduro, que em uma “aula magna” no seu programa de TV ensinou que Jesus Cristo foi “condenado injustamente pelo Império Espanhol” e “ressuscitou para a vida imortal como um espírito palestino”. Mas decidi variar um pouco e conceder o troféu a Anitta (foto): a popstar voltou faz pouco de um “retiro espiritual”, ao custo de R$ 11 mil por cabeça — dinheiro de pinga para ela, certamente —, e voltou elogiando a “experiência transformadora”, de “luta contra o ego” (imaginem a síndrome de abstinência, cinco dias inteirinhos sem redes sociais!). Logo depois, é claro, postou tudo na internet. O ego ganhou mais essa.

 

Reprodução/Instagram @anitta
 

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  1. Vejam as notícias nos canais de TV mais famosos: são exatamente iguais até no roteiro que sugere ter sido combinado. Com alguma exceção( que não vou citar para não causar polêmica) as abordagens são sempre as mesmas mudando a forma, mas nunca o conteúdo. Jornalistas que são especialistas em absolutamente tudo e comentaristas escolhidos à dedo para confirmarem o que a rede de TV quer ouvir. Todos eles têm fontes inesgotáveis no Governo e conversam com elas mais que o próprio Governo.

  2. Pelo que já ouvi falar de venezuelanos esclarecidos, o Maduro dá de 10 x 0 na Dilma. Ele é campeão de memes pelas idiotices que fala.

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