Agentes da Polícia Civil do Rio de JaneiroA Polícia Civil carioca em território controlado por milícia: sem estratégia efetiva - Foto: Reprodução

Direita e esquerda têm interesse político nas milícias

Estudo revela crescimento de 387% no território controlado por milícias no Rio de Janeiro Poder de arregimentar votos faz com que partidos se aproximem desses grupos criminosos
13.10.23

O brutal assassinato de três médicos em um quiosque na Barra da Tijuca, na semana passada, chamou atenção para a avassaladora onda de violência provocada pela disputa territorial entre milícia e facções de traficantes que assola a Zona Oeste do Rio de Janeiro. A ação de apenas 30 segundos que matou Diego Ralf Bomfim, Marcos de Andrade Corsato e Perseu Ribeiro Almeida e deixou ferido Daniel Sonnewend Proença se soma aos registros de tiroteios, massacres e homicídios que têm ocorrido ao longo deste ano na área.

“Estamos há anos vendo estampadas nos jornais as imagens de mortos e feridos vítimas do crime e até agora nada foi colocado em prática para pôr fim nesse problema. Precisamos de soluções para ontem, porque o Rio de Janeiro não aguenta mais esperar”, afirma Carlos Nhanga, coordenador regional do Instituto Fogo Cruzado (IFC) no Rio de Janeiro.

O mais recente levantamento realizado pelo Instituto, em setembro de 2022, apontou crescimento de 387% no território controlado por milicianos, ao longo de 16 anos. As áreas conquistadas equivalem a quase duas vezes o tamanho da cidade de Niterói.

Para o sociólogo José Claudio Souza Alves, especialista no estudo de milícias e grupos de extermínio, três mutações na estrutura miliciana seriam as responsáveis pela expansão desses grupos no Rio de Janeiro. “Uma das mutações que a gente tem visto mais recentemente são as novas alianças que estão surgindo. Há um ano e meio, seria impossível imaginar uma aliança entre o Comando Vermelho, a facção criminosa mais antiga no Rio de Janeiro, e a milícia. Agora, temos notícias de que isso está ocorrendo em algumas áreas da Zona Oeste do Rio de Janeiro”, afirmou o professor.

A participação de civis nas milícias, originalmente formadas por agentes da Segurança Pública, é outro fator apontado por José Cláudio para a amplificação da estrutura das milícias. “Eles iniciaram um movimento de trazer civis para atuar no chão da rua, na base miliciana. Muitos desses civis vieram da estrutura do tráfico, principalmente do Terceiro Comando Puro (TCP)”, explica o sociólogo. “Isso começa a criar uma dinâmica em que os civis vão montando as suas próprias estruturas de milícia, conforme o dinheiro que têm, seu poder bélico e a capacidade de manter territórios com controle militarizado. Tem que ter arma, estratégia e dinheiro.”

Outro fator que explica o crescimento desses grupos está relacionado ao uso político da estrutura miliciana. Segundo José Cláudio, as milícias controlam áreas urbanas visando o lucro, predominantemente. Mas esse controle logo se traduz em influência política. Diz ele: “Áreas extensas de atuação geram receitas, que são posteriormente direcionadas para fortalecer sua influência política. Existe uma conexão sólida entre a estrutura das milícias, o ganho econômico e o sucesso no cenário político-eleitoral”.

No mês de setembro, 32 disputas entre facções criminosas e milícias espalharam tensão e medo entre os moradores da região metropolitana carioca. Ao menos 22 pessoas foram baleadas nesses tiroteios, segundo relatório mensal do Instituto Fogo Cruzado.

Os exemplos ocorrem a torto e a direito na cidade que é o cartão de visitas do Brasil. Em janeiro, confrontos sangrentos entre grupos rivais mergulharam bairros como Muzema, Gardênia Azul e Cidade de Deus em um estado de pânico. Durante mais de dez dias consecutivos, tiroteios ininterruptos entre milicianos e traficantes aterrorizaram a população local. Dois meses depois, em um incidente semelhante, quatro indivíduos foram assassinados a tiros de fuzil em frente a uma padaria no bairro Anil, na mesma região. Entre as vítimas, estava o provável líder de uma das milícias que atuam na área.

As milícias constituem uma ameaça gravíssima à segurança pública e à democracia no Brasil e há o risco de que organizações desse perfil se espalhem pelo país. As causas desse processo são complexas, mas estão ligadas ao fato de que não há controle externo efetivo sobre as polícias no Brasil”, explica o sociólogo Marcos Rolim.

Segundo José Claudio, o poder de arregimentar votos faz com que as milícias e seus representantes sejam tratados como atores políticos legítimos pelos grandes partidos. “O fato de o presidente Lula colocar no primeiro escalão do governo uma ministra que tem relação familiar direta com a estrutura miliciana de Belford Roxo, como foi o caso da ministra do Turismo [Daniela Carneiro] demonstra claramente o interesse que os grupos políticos têm por esse pessoal”, diz ele. “Temos hoje uma situação em que atores da direita e da esquerda seriam atingidos por investigações profundas sobre as milícias. Como o centro vai para o lado que oferece mais, ficamos nesse jogo em que ninguém quer que haja revelações, pois elas podem prejudicar a todos.“

O sociólogo é cético em relação às propostas do Ministério da Justiça para o Rio de Janeiro: “O Flávio Dino é uma piada, a meu ver. Ele diz que vai federalizar as investigações do assassinato dos médicos, que vai envolver a PF… Então você deveria mandar a PF se envolver em cada caso de cidadão assassinado por milícia ou tráfico que acontecer no país. Vai resolver dessa forma? Isso é loucura.”

Procurados por Crusoé, nem o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro nem o Ministério da Justiça e Segurança Pública se manifestaram até o fechamento desta edição. A reportagem procurava questioná-los, em particular, sobre as soluções oferecidas pelo Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), lançado em junho pelo Ministério da Justiça. Centrado na transferência de verbas aos estados, ele é visto por Crusoé como genérico e ineficaz.

Marcos Rolim ainda acredita na reversão do quadro com milicianos no Rio de Janeiro. “O que estamos vendo no Rio de Janeiro pode ser revertido, mas apenas se a União sair de sua posição secundária e inefetiva na segurança pública e assumir o centro do que deveria ser o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)”, diz ele.

Sem uma estratégia abrangente, não haverá avanço, afirma José Cláudio. “Os países que conseguiram avançar fizeram articulações muito bem elaboradas e gastaram muito dinheiro com isso. Tem que ter vontade política e tem que ter recurso. Lula tem isso na mão desde 2003. É uma proposta baseada na experiência de países como Holanda, Estados Unidos e Inglaterra que vários pesquisadores  prepararam e entregaram nas mão dele em 2003. Nunca saiu do papel.”

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  1. É um erro a matéria (e o entrevistado) falar de combater as milícias como se o traficantes não existissem. Se retirar a milícia de um local, o tráfico reassume a área. O tráfico é um estado paralelo tão bem estabelecido e assustador que nem jornalistas nem especialistas se tratam do assunto… E “bairros” é um termo impreciso para Muzema, Gardênia Azul e Cidade de Deus - são áreas ocupadas, sem código de obras, ou ruas, sem serviços oficialmente estabelecidos - as chamadas comunidades ou favelas.

  2. Sinceramente, não sei o que fazer com o RJ, é uma verdadeira terra de ninguém. Acho que só uma intervenção federal séria, comprometida em resolver a questão poderia dar jeito. Como outro leitor escreveu, passou da hora de tratar as milícias como grupos terroristas.

  3. A imprensa(Crusoé à bordo) precisa tratar o Rio de Janeiro como Território Ocupado. O Governo precisa começar a tratar os milicianos como terroristas. O terror não é só aquele que explode bombas. O judiciário precisa começar a aplicar sanções e penas mais severas sem abrandamentos. O legislativo precisa criar leis mais duras, inclusive considerando o porte de fuzil como tentativa de homicídio. Ou seja: nada vai acontecer e já já teremos um miliciano Governador.

  4. Nota-se que os interesses envolvidos na perpetuação dessa calamidade são os mais variados com a agravante do envolvimento da crescente delinquência política.

  5. Lula com Daniela Carneiro, família Bolsonaro com capitão Adriano e Fabrício Queiroz. Pior que isso são as nomeações para cargos vitalícios feitas por Lula, exemplo Dias Toffoli, e por Bolsonaro , exemplo Kassio Kopia Kola.

  6. A (falta de) segurança pública é o principal problema do país e ninguém está interessado em enfrentá-lo. Só se pode explicar por covardia, pelo crime ter infiltrado a política ou pelos políticos terem interesses eleitorais nos redutos do crime.

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