O premiê indiano Narendra Modi e o presidente LulaO indiano Narendra Modi e Lula: nações oportunistas - Ricardo Stuckert/PR

O Brasil de Lula 3 no G20 da Índia

Não se espera qualquer resultado relevante desse G20 indiano para o mundo e para o próprio Brasil, a não ser o fato de que a presidência rotativa do grupo passa pelo prazo de um ano para o governo Lula
01.09.23

A 18ª reunião de cúpula do G20, a ser realizada em Nova Déli, capital da Índia, nos dias 9 e 10 de setembro, não será propriamente uma novidade para Lula, que já participou dos primeiros encontros desse grupo desde que ele foi originalmente convocado para tratar da crise financeira de 2008, pelo próprio presidente George Bush, em Washington. O grupo deriva diretamente, embora em nível hierárquico inferior, do Financial Stability Forum, que por sua vez tinha nascido na crise financeira anterior, na segunda metade dos anos 1990. A diferença entre a natureza de um e outro grupo das economias mais relevantes do planeta está em que o antigo Forum tinha no seu certificado de nascimento uma crise, mais uma, de países em desenvolvimento, ao passo que o G20 deu seu primeiro passo, em nível de chefes de Estado, após a implosão da bolha imobiliária no mercado americano, seguida de seu impacto no sistema bancário e de seguros, se espalhando logo depois para os demais países desenvolvidos, devido aos efeitos sistêmicos dos derivativos financeiros criados a partir das hipotecas avalizadas por agências financeiras oficiais do governo americano e alegremente adquiridos por investidores da Europa e do Japão, certos de que o Triplo A atribuído a esses derivativos eram para valer.

Independentemente, porém, das diferenças de hierarquia, de representação e de agenda dos dois grupos, similares na composição, mas não semelhantes em propósitos – o primeiro mais burocrático, o segundo mais político –, ambos precisam tratar das crises recorrentes das economias de mercado, pois que praticamente todas o são atualmente, com a exceção de duas pequenas sobrevivências do stalinismo senil situadas nas antípodas do mundo. O contexto mundial no qual vivemos atualmente é sensivelmente diferente daquele que vigorava no final dos anos 2000, já que o prevalecente no início desta terceira década do século revela uma perda relativa de preeminência econômica do G7, face à crescente importância comercial, tecnológica e financeira do bloco do Brics – recentemente ampliado, mas sempre contando com o peso desproporcional da China –, e acima disso, no tocante ao clima político e diplomático que se deteriorou significativamente na relação entre as potências econômicas das democracias avançadas de mercado e as duas grandes autocracias que no passado eram oficialmente comunistas.

O Brasil, como uma das dez maiores economias do mundo, esteve presente em todas essas ocasiões, assim como Lula esteve presente, desde o primeiro mandato, como convidado especial, em reuniões exclusivas do G7 (ou G8, enquanto este existiu, até 2014), ainda que apenas para um encontro informal entre os dirigentes do G7 e um pequeno número de dirigentes de países  selecionados entre pequenas e grandes nações, algumas desenvolvidas, outras em desenvolvimento, mas que eram “apenas reuniões de sobremesa”, não decisórias, como disse algumas vezes Lula, um pouco depreciativamente. Desde 2003, Lula esteve presente no G7 de Evian, a convite do presidente Jacques Chirac, de quem aliás ganhou de presente um relógio de pulso Piaget, avaliado em algumas dezenas de milhares de euros, mas não no quadro dos encontros do G7, e sim por ocasião do ano do Brasil na França, em 2005. Ao início de seu primeiro mandato, Lula tentou estender o seu programa Fome Zero – aliás, um fracasso no Brasil, descontinuado em favor da aglomeração de diversos programas sociais criados sob Sarney e FHC no Bolsa Família – numa espécie de Fome Zero Universal, tampouco bem-sucedido e depois transformado, com a ajuda do mesmo Chirac, num programa de ajuda a países africanos no combate à Aids.

O G20 não trouxe exatamente uma “solução” para os problemas criados pela crise dos derivativos de 2008 – que arrastou diversos grandes bancos e até países desenvolvidos à inadimplência, socorridos pelos meios tradicionais do FMI e do Banco Central Europeu, notadamente no caso da Grécia –, mas permitiu um começo de intercâmbio de ideias e propostas entre os dirigentes das principais economias do planeta, que mais adiante se refletiu em alguns avanços em outras matérias que não exatamente crises financeiras, como na área ambiental ou no combate à lavagem de dinheiro e outros crimes transnacionais. A despeito da oposição do PT, essas reuniões do G20 abriram caminho para que mais adiante, nos governos de Dilma Rousseff e de Michel Temer, Joaquim Levy e Henrique Meirelles reforçassem a política de aproximação com a OCDE.

O G20 de Nova Déli ocorre em outras condições, bem mais difíceis do que os exercícios anteriores, sob o impacto do segundo ano da guerra de agressão da Rússia à Ucrânia, de certo modo uma extensão da mudança de humor já iniciada quando da invasão e anexação ilegal da península da Crimeia em 2014, quando a Rússia foi expelida do então “puxadinho” do G8, uma das várias sanções econômicas introduzidas contra o agressor pelos países ocidentais. Naquela ocasião, rompendo com a tradição do Itamaraty de estrito respeito às normas do Direito Internacional e de absoluto respeito à Carta da ONU, a presidente Dilma Rousseff não tomou qualquer posição a respeito da grave violação da soberania ucraniana, a pretexto de que tal invasão era um “problema interno da Ucrânia”. Foi um primeiro exemplo do baixo acatamento, pela diplomacia presidencial, dos padrões habituais do Itamaraty de adesão a princípios consagrados da legalidade internacional, práticas mais adiante continuadas, sob diferentes pretextos, pela diplomacia de Bolsonaro e de Lula 3.

Putin não comparecerá ao G20 da Índia, assim como não compareceu ao Brics de Joanesburgo, provavelmente por causa do pedido de prisão por crimes de guerra na Ucrânia a pedido do TPI, a despeito do fato de a Índia não ser aderente ao Estatuto de Roma, o que era o caso da África do Sul, mas também sob a ameaça de ser acusado de ser o que é, pelos dirigentes dos países que apoiam a Ucrânia e o respeito devido à Carta da ONU. A Índia, aliás, teoricamente neutra nessa guerra de agressão, é uma das nações mais oportunistas, ao adquirir petróleo com desconto da Rússia e possivelmente revendê-lo a preços mais elevados para outros países importadores de combustível. O Brasil, no mesmo sentido, expandiu num significativo percentual suas importações de combustíveis da Rússia, contribuindo assim para o esforço de guerra de Putin, mesmo aderindo, teoricamente, a esse neutralismo mal disfarçado dos países do assim chamado “Sul Global”, que acaba beneficiando o agressor.

Não se espera qualquer resultado relevante desse G20 “indiano”, para o mundo e para o próprio Brasil, a não ser o fato de que a presidência rotativa do grupo passa pelo prazo de um ano para o governo Lula, que terá assim a obrigação de organizar reuniões preliminares e outros grupos técnicos de sua preferência, como forma de preparar o encontro de cúpula do segundo semestre de 2024. Espera-se que o Brasil dê ênfase aos temas privilegiados pelo governo Lula na agenda internacional, como o combate às desigualdades e à fome, a cooperação nas iniciativas já tomadas em torno da sustentabilidade e outras questões habituais nesse tipo de encontro, com algum toque diferente que o Itamaraty ou o próprio governo possam sugerir.

Num contexto no qual o encantamento inicial com a terceira presidência Lula já deu mostras de arrefecimento junto aos principais governantes dos países ocidentais – em princípio, exatamente por causa da violação ao Direito Internacional causada pela Rússia e pouco enfatizada pelo governo Lula –, essa presidência do G20 pode ajudar a corrigir um pouco essa má percepção de suas atuais “alianças” internacionais, ou continuar a empanar a sua imagem junto ao Ocidente e até a liderança na própria região, onde outros líderes progressistas – como Boric do Chile, ou Petro da Colômbia – já deram mostras de maior comprometimento com uma diplomacia fundada no respeito à Carta da ONU. Esperava-se mais de um governo declaradamente a favor, assim como o próprio Itamaraty, da estrita solução pacífica das controvérsias entre Estados.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

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