DivulgaçãoOs três tenores: Pavarotti e Domingo quiseram homenagear o amigo que superou uma leucemia

Diluição ou popularização?

Existe uma diferença entre a música dos Três Tenores e a literatura de Harry Potter ou os concertos de música de cinema
01.09.23

Quando surgiu o fenômeno literário de Harry Potter, os comentadores louvaram o fato de os jovens estarem voltando a ler, dizendo que essa seria a porta de entrada para o mundo da literatura mais séria e mais profunda. O que aconteceu na prática? Aqueles leitores ficaram consumindo esse tipo de livro e só. Não foi uma porta de entrada para a literatura, foi só um novo nicho de mercado que se criou.

O mesmo acontece na música clássica. Os exemplos são vários. Desde concertos com música de cinema em que o maestro se veste de Darth Vader e rege com uma sabre de luz, o concerto de músicas bregas feita pela Orquestra Sinfônica da Bahia, ou a pausa do selfie no Theatro Municipal de São Paulo (no final do concerto, um trecho é repetido para as pessoas fazerem selfies, filmarem etc).

A intenção é atrair um público maior, especialmente jovens. Mas será que atrai mesmo? Não duvido que esses concertos em si tenham um bom público. Mas acontece o mesmo do fenômeno Harry Potter: esse novo público fica só ali. Ele não vai virar assinante ou frequentador da orquestra.

Vamos dar um exemplo oposto. O tenor José Carreras venceu uma leucemia da qual tinha apenas 10% de chance de sobreviver. Os colegas Luciano Pavarotti e Plácido Domingo quiseram homenageá-lo e fizeram um concerto com o objetivo de arrecadar recursos para uma fundação que luta contra a leucemia. Assim nasceu Os Três Tenores.

Os tenores cantavam músicas clássicas e populares bem orquestradas, regidas por um experiente maestro, Zubin Mehta, até hoje conhecido como “o maestro d’Os Três Tenores”. Fizeram vários concertos pelo mundo e venderam mais de 12 milhões de cópias. E o mais importante: diferente dos casos anteriores, Os Três Tenores popularizou a música lírica, atraindo um grande público para as salas de ópera e de concerto.

A pessoa ouvia o Nessum Dorma, ária da ópera Turandot, cantada pelo Três Tenores, e se interessava por ouvir a ópera inteira. Ou por ver um dos três tenores numa montagem completa de ópera.

É a diferença entre popularização e diluição. É maravilhoso que os bens culturais possam ser popularizados, chegando a um público maior. Não é isso que fazem a literatura de Harry Potter ou os concertos de música de cinema do tipo que citei. Ali estão elementos artísticos diluídos, que deixam o público com a falsa impressão de acessarem bens culturais de valor.

Outro bom exemplo são os Concertos para Jovens feitos por Leonard Bernstein com a Filarmônica de Nova York a partir da década de 1960. Bernstein, com seu talento múltiplo de pianista, maestro e compositor, conseguia formar plateias como ninguém. Seus programas eram transmitidos pela TV, onde explicava elementos da composição, do funcionamento de uma orquestra, e por aí vai.

No Brasil, quem fez isso foi Eleazar de Carvalho. Curiosamente, Bernstein e Carvalho foram alunos do maestro Serge Koussevtzky, regente da Orquestra Sinfônica de Boston. E Zubin Mehta, o maestro d’Os Três Tenores, foi seu aluno. O Festival de Inverno de Campos do Jordão e a Osesp são resultados do esforço de Carvalho na formação tanto de músicos qualificados quanto de público.

Até recentemente, a Osesp manteve um excelente programa de palestras antes dos concertos, feitas por Leandro Oliveira. Ele contava a história das peças e dos compositores e até tocava ao piano partes da melodia das obras. Uma forma eficiente de educar o público. Infelizmente, as palestras viraram um programa online no canal do Youtube da Osesp, sem o mesmo efeito das palestras presenciais.

Outro elemento importante para educar o público é a crítica. A crítica é um intermediário entre o artista e o público e era veiculada especialmente nos jornais impressos, que estão em crise. Até recentemente, os jornais – até mesmo os locais, no Recife, por exemplo – tinham crítica de cinema, de teatro, de música, mas isso foi decaindo com a ascensão das redes sociais e com a crise do jornalismo. Os influenciadores tomaram o lugar dos críticos como intermediários entre o público e o artista. Os efeitos disso ainda não sabemos, mas suponho que não sejam nada bons.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Nas manhãs de domingo da minha infância e adolescência assistia na TV “Concertos para a Juventude”. Foi ali, sem nenhuma influência familiar, que tomei gosto pela música erudita. Para gostar dos clássicos é preciso ouvir os clássicos. Não dá pra gostar de clássicos porque se ouviu uma orquestra tocar música de cinema.

  2. Minha memória é péssima, mas acho que o Maestro João Carlos Martins contribuindo com suas habilidades durante um show de Sertanejo Universitário, ou coisa parecida. Só me lembro de ter ficado pasma com a disposição deste brilhante maestro se envolver nessas duplas pseudo-sertanejas, que se vestem de caubóis. Não acredito que esse trabalho tenha aproximado a garotada do mundo da música erudita.

Mais notícias
Assine agora
TOPO