Foto: Alissa de Leva/PixabayMaconha em julgamento; decisão sobre a droga será de 11 ministros indicados, em vez dos 513 deputados eleitos

O STF deveria descriminalizar a maconha?

O Supremo passou a assumir o papel de legislador em questões que deveriam permanecer sob a competência do Congresso
01.09.23

O Brasil vai legalizar a Cannabis? Esse foi o assunto mais debatido nesta semana, já que retornou à mesa dos ministros do STF uma decisão que impacta diretamente a criminalização da posse de maconha para uso pessoal. No entanto, o que se discute neste texto não é se a Cannabis deveria ser ou não ser legalizada, mas sim se o STF é a instituição adequada para tomar essa decisão.

Voltou à discussão a análise de recursos que contestam a constitucionalidade do art. 28 da lei 11.343/2006, que aborda a posse, o porte e a utilização de drogas para consumo pessoal. De acordo com essa lei, aqueles que adquirirem, guardarem, mantiverem em depósito ou transportarem drogas para uso pessoal estarão sujeitos às penalidades preestabelecidas. O argumento que contrapõe esse dispositivo alega que ele viola o direito à intimidade e à vida privada, garantidos pelo art. 5° da Constituição. Na quinta-feira (24), os ministros se posicionaram com 5 votos favoráveis à descriminalização e 1 voto contrário, sendo Cristiano Zanin o único a discordar da modificação da norma.

É importante destacar, no entanto, que o que não foi amplamente discutido ao longo das últimas semanas, principalmente por grande parte da mídia brasileira, é se esse tipo de assunto deveria de fato ser decidido pelo STF.

O sistema democrático brasileiro se baseia na ideia de que elegemos parlamentares alinhados com nossos valores e princípios para nos representarem na elaboração das regras que regem a sociedade. É por isso que temas polêmicos, como a legalização de drogas, aborto e outras controvérsias, ganham destaque durante as campanhas eleitorais, tendo em vista que os candidatos buscam conquistar o voto dos eleitores comprometendo-se a defender determinadas convicções nas casas legislativas. Estamos falando de 513 deputados federais, de mais de dez partidos políticos, que representam os 27 estados brasileiros. São mais de 100 milhões de votos representados no Congresso Nacional.

O STF, por sua vez, é a mais alta corte do sistema judiciário, composta por 11 ministros indicados pelos presidentes, que devem atender aos critérios de notável saber jurídico e reputação ilibada. A principal função dessa corte é resolver disputas de acordo com a Constituição e as leis vigentes. Isso implica que o Judiciário tem a responsabilidade de solucionar conflitos interpretando as normas, e não criar novas definições legais. Questões relacionadas a valores morais, políticos, culturais ou sociais devem ser antes normatizadas pelo Legislativo, para que depois sejam aplicadas pelo Judiciário.

Mas, infelizmente, o STF tomou uma direção contrária e passou a assumir o papel de legislador, influenciando questões que deveriam ser exclusivamente abordadas em debates políticos e permanecer sob a competência das instâncias legislativas. Isso se torna evidente em alguns casos, como quando o STF decidiu equiparar ofensas à comunidade LGBT com injúria racial e racismo. Ora, a injúria racial é um delito tipificado no Código Penal — ou seja, um crime previamente definido no Parlamento por legisladores. Não é atribuição do sistema judiciário criar crimes por interpretação, com base na crença dos ministros.

O direito penal tem a função de reprimir as práticas consideradas mais intoleráveis pela sociedade por meio das penas mais graves, como a privação da liberdade. Isso é conhecido como a “ultima ratio”, expressão em latim que significa “último recurso”. Os acordos políticos para estabelecer um novo crime são os mais rigorosos, como previsto no regimento interno da Câmara Federal, em que toda questão relativa ao direito penal deve ir a plenário para preservar o debate democrático. Com isso em mente, estamos diante de uma situação em que 11 ministros decidem criar um crime sem lei prévia, o que inclusive viola as garantias constitucionais. Ou seja: assim como recentemente o tribunal criou um crime, neste momento o mesmo tribunal está suprimindo um crime.

Estamos trocando os 513 deputados federais eleitos por 11 ministros indicados, o que além de resultar numa injusta concentração de poder nas mãos de poucos é um enorme prejuízo para a credibilidade da democracia. A separação dos Poderes constitui uma das principais bases de um Estado democrático; quando essa separação é negligenciada, a instituição se fragiliza e o sistema como um todo fica sujeito a questionamentos. Quem mais vai acreditar que as instituições cumprem o seu papel? Qual é a motivação para um eleitor confiar seu voto ao sistema político, já que as decisões que em tese deveriam ser tomadas por seus representantes eleitos serão tomadas por ministros indicados?

Para os partidos políticos, é mais vantajoso negociar com o presidente a nomeação de um ministro do Supremo alinhado com suas visões, em vez de efetivamente competir no campo político, por meio de eleições, na defesa de seus valores e interesses. Mais um grande atraso na democracia brasileira.

 

Anne Dias, advogada, é presidente do LOLA Brasil

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