Foto: Reprodução, YouTube tvdussekEduardo Dussek, cantor do "Rock da Cachorra", de Leo Jaime; o cachorro e a criança pobre têm de ser instagramáveis

Troque sua capivara por uma criança pobre

05.05.23

“Pare o mundo, que eu quero descer” é um clichê, mas também uma descrição exata do sentimento daqueles que trabalham nessa profissão fascinante e bem remunerada que é o jornalismo. OK, não sou porta-voz dos meus colegas e falo só por mim: em vez de ficar o dia inteiro deitado no sofá lendo, ouvindo música ou fazendo nada, que é o que eu gostaria que me pagassem para fazer (sou craque nisso, só falta o reconhecimento da profissão), toda hora o noticiário me obriga a lidar com, well, notícias, essas malditas coisas que acontecem nos momentos mais inoportunos. E não para de acontecer coisa no Bananão: um dia é “Bolsonaro preso amanhã”, nos outros é Deus e o Diabo no PL das Fake News, CPMI do apocalipse zumbi de 8 de janeiro, calabouço fiscal, marco do saneamento (sempre imagino um sujeito de boné da Sabesp dizendo “oi, tudo bem? Eu sou o Marco do saneamento”. Desculpem, é mais forte que eu).

Antigamente, as coisas podiam acontecer à vontade que só virariam notícia no dia seguinte, por mais que elas ficassem berrando e esperneando na sua frente: era preciso seguir o lento processo de produção de um jornal. Depois que inventaram essas modernices como rádio, TV e internet, o homem-mordendo-cachorro nem precisa terminar de acontecer para ser noticiado; aliás, é comum que nem precise acontecer. As redes sociais e o WhatsApp não só levaram ao paroxismo esse mundo do “tudo ao mesmo tempo agora” como acabaram com o papel de gatekeeper, guardião, que o jornalismo profissional se atribuía: hoje todo mundo pode ser jornalista, ombudsman e sua própria central produtora de fake news. Checagem de fatos é, na melhor hipótese, enxugar gelo — na pior, as supostas agências checadoras também dão sua mãozinha na disseminação de notícias falsas; por exemplo, a “origem racista” de palavras como criado-mudo.

Escrevi tudo isso para dizer que, nesse cenário, assuntos da semana passada são por definição mais velhos que o naufrágio do Titanic ou a posse do marechal Hermes da Fonseca na Presidência: claramente, a Primeira Guerra Mundial ainda não tinha terminado quando rolou aquela história envolvendo o influencer Agenor Tupinambá e Filó, sua capivara de estimação. Na verdade, não deveria haver polêmica nenhuma aí. Capivara não é pet; é obrigação do Ibama zelar tanto para que animais silvestres vivam no seu habitat como para punir eventuais infratores; e o tal influencer já tinha sido multado em mais de R$ 17 mil pela morte de uma preguiça-real sob sua guarda e por outros delitos ambientais.

Mas não, os libertários de rede social tinham de brigar por essa importantíssima causa que é o direito de dar na capivara um banho com xampu de gente: olha só que bicho fofinho, que cute-cute, que monstruosidade separar o pai de pet do pet-filho, que enxurrada de likes nas redes esse caso rende, que monetização mais bacana. (Vem cá: alguém perguntou à capivara o que ela queria, hein, hein? Posso apostar que a Filó não ganhou um tostão com toda essa notoriedade.)

O pior é que hoje não dá nem para sugerir, à moda de Leo Jaime e Eduardo Dussek, trocar sua capivara por uma criança pobre: assim como a nossa simpática Hydrochoerus hydrochaeris, a criança pobre certamente será instagramada, tiktokada e monetizada por gente muito interessada em mostrar ao mundo como é boazinha. Aquele negócio de “não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” é coisa do passado: nada escapa à lógica do quanto mais clique melhor, nem este texto. Vou ali me deprimir deitado no sofá — com o celular, para clicar em todo tipo de besteira que passar pela internet — e já volto.

***

A GOIABICE DA SEMANA

O troféu desta vez vai para o, ahn, debate de ideias sobre o PL das Fake News, em que os lados a favor e contra defenderam seus pontos de vista com uma pororoca de fake news: só isso já dá uma boa medida do sucesso que essa lei vai ser. Mas o mais bacana foi o relator Orlando Silva dizendo que o projeto é para “proteger as crianças” — pânico moral e o melhor do Carnaval , ou Gregório Duvivier alegando que o PL é uma questão de soberania nacional: se houvesse teste cego de tuítes como existe de vinhos, muita gente acreditaria se tratar de um Carlos Bolsonaro (ou uma Damares Alves) do puro, do legítimo, do escocês. Depois ainda querem me convencer de que bolsopetismo non ecziste.

Orlando Silva: é tudo pelas criancinhas. (Foto: Lula Marques/Agência Brasil)

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  1. Olá, sou o Marco do saneamento!, foi pra acabar, me pegou desprevenido. Não estava minimamente preparado para essa. Chorando de rir até agora. Parabéns novamente pelo excelente texto.

  2. É sempre o primeiro texto que leio da Crusoé, pra suportar com algum humor o Bananão nosso de cada dia. Já posso começar mais uma semana levando pancada na cabeça.

  3. Eu até ia com a cara da tal AVAAZ, até que...pegou o Duvivier para garoto propaganda de algo tão infantil (para não usar palavra mais adequada que proíba minha mensagem)! No mais só gostaria de saber se o curso de Produção de Fake News. Parece que está bombando. Kkkkkkkk

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