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Precisamos falar da Segurança Expressiva

Estão aí com uma lei que pretende combater notícias falsas que talvez, assim, quem sabe, digamos, é pelo menos razoável supor que possa ser usada pra botar em cana quem fale mal de autoridade
05.05.23

Me pergunto se o amigo, como eu, anda preocupado com sua Segurança Expressiva. Sim, porque temos que falar da Segurança Expressiva. Assim como já andamos falando da segurança alimentar, da segurança menstrual, da segurança sanitária, cultural, indumentária, proteica, farmacológica, psicológica, enfim, em seguranças de todos os tipos (inclusive os de óculos espelhados, terno preto, ponto na orelha e Glock no bolso do paletó).

Eu confesso que ando inseguro quanto ao estado da minha Segurança Expressiva. É que estão aí com uma lei que pretende combater notícias falsas (em grego, fake news) que talvez, assim, quem sabe, digamos, é pelo menos razoável supor que possivelmente possa ser usada pra botar em cana quem fale mal de autoridade. Ou gente que fale mal de coisas que as autoridades e seus amigos achem que se deva falar bem. Ou gente que fale bem de coisas que as autoridades e seus colegas achem que se deva falar mal. Ou gente que fale verdades que as autoridades e seus amigos, por esses lapsos tão frequentes e inocentes que as acometem, achem que são mentiras. Enfim, gente que fale qualquer coisa.

O perigo aumenta se as autoridades em questão forem da atual Situação, ou deem suporte à Situação, ou se derramem de amores pela Situação, ou sejam muito fãzocas da Situação, ou correspondam com mimos e atenções aos mimos e atenções que recebem da Situação.

É verdade que eu – eu, que sempre que vejo a Situação passando na rua já me deito e civilmente me ofereço como tapete para que ela não suje os pés – tenho pouco a temer, dada a minha coragem de servir, o meu indomável pendor de me calar, e o meu destemor em falar tudo o que me mandam dizer. Mas pouco a temer é sempre algo a temer, confere? Posso temer um dia, ou pior, uma noite ruim em casa de alguma autoridade, não é? Posso temer uma leitura apressada de algum assessor de alguma autoridade, não é? Posso temer que o adjetivo “estupendo” aplicado a tal ou qual ministro seja mal interpretado, não é? Ou que o adjetivo “assombroso” leve uma sombra ao coração de não sei que juiz, não é? E com essas e outras eu, ora, eu, tímido que sou, acabo me sentido meio inseguro, sabe como é?

Porque a lei vem, e vem fervendo, apesar de estarmos mornos e arrefecendo. Ou antes: a lei vem, mas talvez demore um pouquinho. É que, enquanto digito, ouço dizer que as pessoas que propuseram a lei, e que disseram que ela precisava ser votada urgentemente, bem, essas pessoas se esqueceram de ler o texto todo da lei, de sorte que a urgência ficou adiada para data futura, pós-leitura. Ganhamos aí algum tempo para ajudar nossa tibieza a preparar estratégias. Algum tempo, não muito. Porque também tem isto: os caras disseram que (depois de ler, né?) só vão votar a lei quando souberem que é pra ganhar. O que pode ser daqui a dois minutos ou duzentos anos. E mais ainda: se enrolarem muito, aí ninguém vota mais nada e a lei vem, com outro nome, por outra via e outras mãos – mas, quanto a isso, é melhor a gente antecipar a vigência da coisa e não dar um pio.

Felizmente o Brasil tem na sua história exemplos que nos ajudam a agir (ou a não agir; o amigo escolhe) quando a lei vier. No período fértil de artimanhas retóricas que foi de 1964 a 1985, vários jornalistas, escritores, dramaturgos, músicos populares e políticos foram forçados, que digo?, persuadidos a reformular, refrasear suas expressões, a fim de torná-las seguras e, até onde desse, expressivas. Eles nos legaram seus exemplos, suas táticas, suas saídas pela tangente.

Um receituário que a gente pode seguir, por exemplo, é o do Ivan Lessa, que viveu aqueles tempos e foi craque na coisa. A receita número um, do ano leve que foi 1970, diz: “Atenção, brasileiros, o momento exige extrema precaução e um mínimo de sensatez!!”. Quando vier a lei sejamos, pois, extremamente precavidos e minimamente sensatos. E a número dois, dada algum tempo depois, diz: “A única vantagem da cens, digo, da lei contra as fake news é obrigar o cidadão a exercer as disciplinas das entrelinhas, das alegorias, das insinuações”. Quando vier a lei sejamos, pois, disciplinados, entre (ou só) alinhados, alegóricos, insinuantes. Ou sejamos calados como as corujas, que falar, não falam, mas prestam uma atenção…

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  1. Cada vez que leio sobre Fake News como uma praga atual me lembro do repórter Amado Ribeiro e sua narrativa sobre o beijo no asfalto....

  2. Os ungidos que pensam que pode nos calar com leis de censura disfarçadas de coisa boa são os mesmos que diziam lutar contra a ditadura. A pergunta que fica é quem está mentindo para quem? Ou, a ditadura era uma coisa boa ou ruim? MS

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