Ricardo Stuckert/PRLula: erros de leitura e bate-cabeça entre ministros

Em busca da geringonça

Após derrotas, Lula assume a missão de montar uma base que funcione em um Congresso rebelde e fragmentado
11.05.23

As histórias se repetem, ainda que com personagens e sotaques diferentes. A  palavra no título desta reportagem faz referência a Portugal. “Geringonça” foi o apelido dado ao governo de António Costa, do Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, que assumiu o poder em 2015. Em uma manobra bem-sucedida, ele conseguiu montar uma improvável coligação com três partidos radicais de esquerda. Apesar das divergências internas, o experimento garantiu uma base ao governo no Congresso e durou até 2021.

No Brasil, onde predomina o presidencialismo de coalizão, as ligas formadas entre partidos nunca tiveram a mesma coerência ideológica dos parlamentos europeus. Mesmo assim, impressiona que, mais de quatro meses depois de  assumir o Palácio do Planalto, Lula ainda não tenha conseguido consolidar uma base de apoio no Congresso, mesmo que heterogênea. O petista continua em busca de sua geringonça e nos últimos dias agendou reuniões com líderes de partidos e mandou liberar recursos que estavam retidos desde o ano passado –  resquícios do famigerado orçamento secreto.

Desde a posse de Lula, foram quatro meses de tropeços, coroados com duas  derrotas na Câmara. No dia 3 de maio o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), colocou para votação um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que derrubava dois decretos assinados pelo presidente Lula alterando regras do marco do saneamento. O PDL bancado por Lira passou com 295 votos a favor, no que foi uma derrota do governo. Dado preocupante: os votos obtidos para derrubar os decretos presidenciais são apenas 47 a menos do que o necessário para abrir um processo de impeachment. Até mesmo partidos da base votaram contra o governo. Entre eles estava o PSB, cujo líder, Felipe Carreras, também comanda o superbloco que reúne 175 parlamentares de nove siglas na Câmara.

Um dia antes, o governo vivenciou outro fracasso de sua articulação política, na tentativa de aprovar o Projeto de Lei das Fake News. Lira, dessa vez alinhado ao Planalto, tinha conseguido aprovar a urgência para a tramitação da matéria, mas teve de retirar o projeto da pauta quando percebeu que não teria os votos suficientes para a aprovação.

Diversos fatores podem ser elencados para explicar o desastre governista no Congresso. O mais óbvio deles é a composição da Casa, que agora tem um perfil mais conservador nos costumes e liberal na economia. Além disso, o governo cometeu seguidos erros de leitura sobre como o Legislativo funciona.

De início, o governo apoiou as candidaturas à reeleição de Lira e, no Senado, de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), na expectativa de que poderia controlar o Parlamento dessa forma. Mas não contou que o Congresso de hoje é outro. Os parlamentares contam com o orçamento impositivo, que lhes garante o pagamento de emendas independentemente da vontade do Executivo. Sua autonomia aumentou bastante.

O Congresso não vai voltar ao ponto de ser apenas um validador dos interesses do Executivo. Cada parlamentar já dispõe de 60 milhões em emendas, vote como votar. E o mesmo Congresso tem avisado que deseja participar do processo de elaboração de políticas púbicas, ou seja, da pauta”, observou o cientista político Leonardo Barreto em artigo para a Crusoé na semana passada.

Isso não significa que a liberação de verbas pelo governo tenha se tornado irrelevante. Mas reter recursos, hoje, é mais uma forma de irritar parlamentares do que um meio de “convencê-los” a entrar na linha. As regras do fisiologismo já não são as mesmas.

O governo também é prejudicado pelos seus tropeços na articulação política. No Planalto, dois personagens se batem a todo momento: o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e o ministro da Casa Civil, Rui Costa. Um tenta jogar no outro a culpa por suas falhas.

Padilha foi cobrado publicamente por Lula para que resolvesse a situação com o Congresso. Rui Costa foi preservado, mas era sobre o chefe da Casa Civil que as críticas de parlamentares se avolumavam e a quem eles atribuíam, em parte, as derrotas do governo. Governistas ouvidos pela Crusoé indicam que a ideia dos decretos derrubando pontos do marco do saneamento saiu da Casa Civil, com fins a beneficiar uma estatal da Bahia, estado de Costa. Enquanto esses entendimentos evoluíam, Lula atacava o marco do saneamento. Foi um erro de estratégia enorme, porque o marco não foi obra do governo anterior de Jair Bolsonaro, sempre vilipendiado por Lula, e sim do Congresso.

O próprio Lira chegou a criticar Rui Costa, durante uma entrevista dada nos Estados Unidos. “Falta [ao governo] entender que o mundo não é o mundo de 10, 15, 20 anos atrás. A política avançou muito nas suas prerrogativas. O Congresso conquistou espaços e as interlocuções precisam ser descentralizadas. O governo, não é um ministro que vai resolver. Não adianta o ministro da articulação resolver e o da Casa Civil não querer”, disse Lira.

No mesmo dia em que Lira dava essa entrevista, Lula chamou os dois ministros para uma conversa no Palácio do Planalto. Foram quase duas horas de reunião com Padilha e Rui Costa.

Lula então entrou novamente em cena, dessa vez mais incisivo. Deu as diretrizes e fechou a estratégia: o governo precisa cobrar a base por fidelidade. Criou uma agenda de reuniões com partidos que detêm ministérios e mandou liberar recursos que estavam retidos desde o ano passado.

Após intervenção de Lula, o governo fez as contas e anunciou o pagamento de R$ 1,6 bilhões em emendas individuais nos últimos 15 dias. Parlamentares de oposição também vêm sendo procurados para dialogar.

Mas há motivos para duvidar que a estratégia venha a render frutos. “O PT não mudou o modelo mental dele. Vai ser uma combinação de regras novas com jogadores antigos. Tem um Lula muito treinado no presidencialismo de cooptação, mas que agora encontra as regras ‘de cabeça para baixo’. E, mesmo com muito apelos, com muitos avisos, ele continua achando que é um processo de precificação. E não é. O cenário é completamente diferente”, observa Leonardo Barreto no mesmo artigo já mencionado para a Crusoé.

Erros comezinhos são sinais de incompetência. Na terça-feira da semana passada, parlamentares do Republicanos foram chamados para uma reunião com Padilha. Dispararam cobras e lagartos contra o ministro. Reclamaram que o Planalto não realiza alguns gestos simples que poderiam melhorar a relação com os líderes partidários. Eles citaram aprovação da urgência do PL das Fake News, em que deputados dos Republicanos votaram em peso a favor da antecipação da votação. Depois da votação, o governo não enviou nenhum gesto de agradecimento.

Esperava-se, ao menos, uma ligação de Padilha ao presidente do partido, Marcos Pereira. Nem isso ele fez”, disse um dos ouvidos. Na reunião para discutir a relação com o partido, deputados lembraram do episódio e foram além: “Nem o governo Bolsonaro cometeu esse erro amador”, disse a Crusoé um interlocutor do Planalto.

Há expectativa de que nos próximos dias deputados e senadores de siglas como PP, PL e Republicanos tenham conversas com o ministro Padilha. A orientação do presidente Lula para esses encontros é ouvir mais do que falar. O governo quer se mostrar aberto. “Esse é um governo que não espera que o Congresso seja um eco, mas compreende o Congresso como um ator que às vezes quer reformular propostas”, disse Padilha em entrevista recente.

Para os opositores o diálogo, mas para os aliados, a cobrança. O PSB foi o primeiro partido chamado para conversar. Uma espécie de acareação, da qual participaram o líder, Felipe Carreras, o presidente da sigla, Carlos Siqueira, o ministro de Portos e Aeroportos, Marcio França, e o vice-presidente, Geraldo Alckmin.

Existiu um compromisso por parte do governo de enviar um outro texto [ao PDL do saneamento] para ser apreciado. Foi acordado com o presidente da Casa, dito aos líderes partidários, e não foi enviado. O principal crachá da gente aqui no Parlamento é a nossa palavra e eu não tinha como não votar diferente”, disse a Crusoé o líder do PSB na Câmara, Felipe Carreiras (PE). “O próprio governo já está revendo isso. Tem pautas importantes que, antes de serem enviadas, podem ser discutidas com líderes e com o próprio presidente da Casa. Quando não existir, vai acontecer o processo democrático da Casa que tem a sua independência. Talvez tenha sido necessário acontecer o que aconteceu para o governo ir ajustando. Acho que a engrenagem está começando a se ajustar”, diz o líder, após a reunião.

Do lado petista, estavam na reunião Padilha, Costa e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Ela saiu da reunião dizendo: “Se é governo, tem que votar com o governo”. Gleisi já deveria ter aprendido que as coisas hoje não são mais como antigamente.

Se quiser montar sua geringonça, Lula terá de manejar com muita habilidade as as ferramentas de sempre (cargos e verbas), compreendendo ao mesmo tempo que elas já não devem ter o poder de fazer avançar todas as pautas que ele prioriza ou defendeu durante a campanha. O presidencialismo de geringonça é mais instável que o velho presidencialismo de coalizão. O tempo dirá se o PT vai resistir à tentação de recorrer a métodos heterodoxos de cooptação política,  como fez nos episódios do mensalão e do petrolão.

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  1. Enquanto isso toda a corja de corruptos não sofre a menor importunação e até viajam pelo mundo posando de grades estadistas.

  2. Se o PT deixasse de considerar o seu umbigo como mundo e tudo o resto como paisagem não sofreria tanto assim. Mas como humildade não faz parte do vocabulário de um partido hegemónico já estou aguardando a propina.

  3. Eu classifico o regime político atual do Brasil (e acentuou-se ainda mais nos últimos 10 anos) como uma espécie de "jaboticaba política": o parlamentarismo sem responsabilidade. As coalizões existem nos regimes parlamentaristas, mas há a responsabilidade da maioria parlamentar com o executivo. Aqui não, cada votação mais importante esta coalização faz novas cobranças, ameaça rachar ou rebelar-se e os mandatos legislativos seguem intactos.

  4. O problema é que luladrão está senil mas continua corrupto e se cercou de gente idem. Passa a impressão que continua a beber com a mesma intensidade e frequência de antes e dona Esbanja só quer gastar e lacrar mundo afora. Das visitas íntimas no cárcere pulou para hotéis luxuosos do mundo e camas de $40 mil

  5. O que mais impressiona é como se trata com tanta naturalidade a delinquência da compra de apoios, classificando a prática "política", como se a política tenha que ser delinquente por natureza.

  6. Belo eufemismo pra corrupção usando a expressão "métodos heterodoxos". Não se espera outro "método" do presidiário corrupto pinguço que não seja a corrupção, a canalhice, a incompetência, o atraso e o autoritarismo.

  7. O PT teve o mensalão, foi punido, mas, não aprendeu. Veio o petrolão, foi punido e despunido politicamente pelo STF, mesmo com a recuperação de bilhões de Reais dos corruptos e corrompidos. Enfim, o que esperar da cúpula do governo, seja em qualquer dos três poderes? Nada, absolutamente, nada.

    1. Bem isso. E quer saber, que assim seja! Por mais lúcido e responsável que se queira ser, é impossível desejar sorte a esses mentirosos profissionais e estadistas de boteco.

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