Adriano Machado/Crusoé

Como a Doutrina da Razão de Estado explica a repressão após o 8 de janeiro

16.01.24 17:01

A ideia de que, para defender a democracia, é preciso decretar um estado de exceção de fato e prender golpistas inimigos da pátria — passando por cima dos direitos mais básicos, do justo processo e das liberdades mais fundamentais — não é nova. Ela nasce com a Doutrina da Razão de Estado.

Se trata de uma doutrina criada na segunda metade de 1500 por autores italianos e franceses como Maquiavel, Guicciardini, Della Casa e Bodin. Com a decadência da Doutrina do Direito Divino dos Reis, emergiu a necessidade de uma nova teoria que legitimasse o poder politico da época perante o povo.

No século 16, tornou-se importante demonstrar que os interesses do príncipe coincidiam com os dos súditos, os da sociedade. Nasceu, assim, a Doutrina da Razão de Estado.

Esse conceito afirma que, às vezes, por questão de segurança de Estado (da segurança do governante e seus ajudantes) e por questões militares, o Estado pode passar por cima de questões morais, econômicas e jurídicas. É como se houvesse uma razão superior aos interesses dos indivíduos, dos súditos.

A segurança do Estado (não da sociedade) seria uma exigência tão importante e primária que o príncipe, para garanti-la, poderia desrespeitar normas morais, econômicas e jurídicas. Isso, sobretudo, quando a segurança estivesse sob ameaças internas ou externas. Logo, o governante necessitaria usar qualquer meio, até ilegal, ilegítimo, imoral, como violência e dissimulação, para garantir a própria segurança.

A teoria, além de legitimar as ações do príncipe, justificava suas medidas em nome do “interesse comum”. Ou seja, tira-se a responsabilidade de uma pessoa específica (o príncipe) e se coloca em um novo ente: o Estado.

Antes, os súditos viam as famílias reinantes com distância, desapego e desconfiança. A partir desse momento, a Doutrina da Razão de Estado passou a tentar mostrar que o príncipe age na defesa dos interesses dos integrantes da sociedade, pois também é um deles e persegue o bem deles.

O objetivo era que, paulatinamente, a população se identificaria com o príncipe e com as famílias nobres (e contra as outras), e perceberia os interesses em comum com elas.

É daqui também que nasce o conceito de “interesse nacional”. Nos Estados Unidos, após o atentado terrorista contra as Torres Gêmeas, em 2001, foi preciso fortalecer a ideia de um interesse comum, que acabou desaguando na “guerra ao terror”. Como efeito colateral, isso também passou a justificar a quebra do sigilo telefônico, bancário e de e-mail da população americana.

Esse mesmo princípio também foi usado no Brasil para aprovar o Ato Institucional número 5, o AI-5.

Atualmente, a Doutrina de Razão de Estado costuma fundamentar os pedidos para criar um “estado de exceção” ou “estado de sítio”. Nessas ocasiões, proíbem-se manifestações, reuniões de muitas pessoas em lugares públicos e se impõe o toque recolher, como está ocorrendo agora no Equador.

É essa doutrina também que permite a aplicação do “segredo de Estado” em alguns documentos relevantes.

No Brasil, essa doutrina tem sido invocada no combate aos que participaram dos Atos de 8 de janeiro (foto), em Brasília.

No discurso daqueles que defendem a sua aplicação, afirma-se que a invasão das sedes dos Três Poderes teria sido um golpe, um ataque à democracia. Portanto, para combater seus protagonistas, valeria tudo: suspender de fato os direitos mais básicos dos cidadãos, ignorar o justo processo e atropelar as liberdades mais fundamentais.

Obviamente, alguns governos utilizam a Doutrina da Razão de Estado para limitar a oposição.

Usando justificativas de segurança, eles barram o acesso a documentos, fecham de partidos, empreendem uma diplomacia secreta, censuram vozes discordantes e aplicam protecionismo comercial.

Para lidar com o que acreditam ser um “estado de perigo”, eles utilizam medidas provisórias e leis excepcionais.

É por isso, então, que existe a ideia que a Razão de estado seja um álibi para esconder fins pessoais dos políticos, diplomatas, militares, altos burocratas ou espiões.

E é o que está acontecendo. Falar de golpe e de ataque à democracia é funcional para poder fazer tudo isso. Sem essa interpretação, ninguém justificaria o que está acontecendo.

 

Adriano Gianturco é coordenador Relações Internacionais do Ibmec de Belo Horizonte

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  1. Se queria arranar um modo para que aquela calhordice fosse algo que não acontceu é melhor procurar outras fontes. Esta foi ruim e não serve para nada!

  2. O populismo, seja de direita ou de esquerda, tem sempre o mesmo objetivo. Tomar e permanecer no poder. A democracia deveria estar mais forte para evitar que isso aconteça. Infelizmente, não é o que se vê no Brasil. As metodologias são diferentes, mas, os objetivos são os mesmos.

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