Lauro Alves / SecomInundação na região metropolitana de Porto Alegre: população não sabia o que fazer

Desprotegidos

Tragédia no Rio Grande do Sul mostra que Brasil não se preparou para catástrofes climáticas
10.05.24

Dos 497 municípios do Rio Grande do Sul, 435 foram atingidos por fortes temporais e submergiram em uma crise humanitária. Em extensão territorial, não há evento climático extremo comparável no Brasil. Ao longo de duas semanas, os céus desaguaram o esperado para cinco meses e desabrigaram mais de 1,4 milhão de pessoas. A força da natureza encontrou poucos obstáculos e inundou cidades inteiras. Sem um plano de evacuação, pessoas permaneceram em suas casas até ficarem sem água e sem luz. Só então elas telefonaram para os centros da defesa civil pedindo resgate e perguntando sobre o que deveriam fazer. Escolas e estádios não estavam preparados para receber essas pessoas, e muitas dessas construções também foram inundadas. O despreparo evidenciou que boa parte da população está hoje completamente desprotegida em um mundo assustador e em constante transformação. É só uma questão de tempo para que elas se tornem vítimas no próximo desastre ambiental.

A tragédia no sul ainda não terminou. Na quinta, 9, quando esta edição de Crusoé estava sendo finalizada, a previsão era de mais chuva, de frio e de nova elevação das águas do rio Guaíba, em Porto Alegre. O desamparo e a falta de orientação eram tão grandes que, com as notícias de mais tempo ruim, muitos começaram a atacar os serviços de meteorologia. Um deles, a Metsul, publicou um desabafo nas redes sociais: “Ninguém, ao menos quem não seja sádico, tem prazer em informar desastre e muito menos prevê-los. Vocês acham que neste momento não gostaríamos de estar prevendo sol por semanas? Todos os nossos estão fora de casa. Cem por cento da empresa. Pior, alguns dos nossos perderam seus lares por completo e não poderão viver por meses onde criavam seus filhos até a semana passada. Vocês acham que nos compadece prever mais chuva ou enchente? Prever mais desastre que toca a nós e aos nossos familiares?”.

Em termos de volume de água, a chuva das últimas três semanas no sul não se compara com a que caiu em São Sebastião, no litoral paulista, no Carnaval do ano passado. Em Bertioga, por exemplo, foram 680 mm de água em 24 horas, o equivalente a 680 litros por metro quadrado. As máximas diárias nas cidades do sul não passaram de 200 mm. A questão é que essa chuva foi constante, por vários dias, em diversos lugares. “Foram sucessivos eventos de chuva forte com temporais, que acumularam, entre o fim de abril e o começo de maio, entre 500 mm e 700 mm em uma grande área de serra. Isso gerou uma vazão altíssima, que escoou com velocidade por áreas de vales”, diz Estael Sias, meteorologista da Metsul. Todo esse volume depois foi descendo, até desaguar nos rios principais, em áreas mais planas. O Guaíba, então, tornou-se um gigantesco funil, antes de as águas irem para a lagoa dos Patos e, em seguida, para o Oceano Atlântico.

A natureza foi a grande protagonista, sem enfrentar grande resistência. No sábado, 4, quando o nível do rio Guaíba estava subindo, uma publicação da Defesa Civil indicava que áreas mais altas de Porto Alegre seriam inundadas, o que espalhou o pânico. A mensagem foi corrigida depois. O sistema de defesa contra enchentes da cidade, construído nas décadas de 1950 e 1960 após a grande cheia de 1941, atenuou o problema, mas não o evitou. A cidade tem um muro de concreto de 3 metros de altura, 68 quilômetros de diques e 14 comportas. Mas, por falta de manutenção, uma das comportas cedeu e outras permitiram que a água passasse pelos lados ou por baixo. A prefeitura, afinal, não gastou um único centavo com essas obras em 2023 — ano em que o Rio Grande do Sul sofreu com a passagem de um ciclone extratropical (16 mortos) e uma enchente no Vale do Taquari, em Lajeado (50 mortos).

No final do ano passado, o governo do estado, comandado pelo tucano Eduardo Leite, apresentou o plano “Estratégias para Ações Climáticas – ProClima 2050“. Ele dá bem a dimensão de como o perigo não foi percebido. Em vez de preparar a população para o caos, falava-se em “reduzir as emissões de carbono em 50% até 2030”, “neutralizar a totalidade das emissões até 2050”, “transição energética”, “programa biogás”, “hidrogênio verde”, “monitoramento da qualidade do ar” e por aí vai. As preocupações com o aquecimento global e com a chamada “transição energética” não são irrelevantes. Elas visam a impedir que os cenários mais radicais traçados pelos cientistas venham a se concretizar. “É fundamental canalizar investimentos públicos e privados para tudo que não faça a situação climática se agravar”, diz Marta Salomon, do instituto Talanoa, dedicado a estudar e propor políticas climáticas. Em paralelo, no entanto, deve-se tomar precauções imediatas quanto a eventos climáticos cada vez mais intensos e frequentes.

Um pequeno trecho do ProClima 2050 fala em “previsão, monitoramento e emissão de avisos e alertas”. Ele não foi executado. Enquanto isso, comitês foram formados em várias cidades para discutir as mudanças climáticas. Mas eles nem sequer foram lembrados quando da criação de gabinetes de crise para lidar com as emergências dos últimos dias. “Eu participei de reuniões em dois desses comitês, em Pelotas e Rio Grande, mas era algo muito pro-forma. Não se falava nada prático, com envolvimento do Executivo, algo que pudesse gerar uma iniciativa”, diz o ecologista e doutor em ciências Marcelo Dutra da Silva, professor da Universidade Federal do Rio Grande, Furg. “No Brasil, nós estamos muito distantes da ideia de que existe perigo e é preciso se prevenir. Muitas das coisas que poderiam ser feitas nem precisariam de muitos recursos. É mais algo de organizar a casa. Talvez agora as coisas se acelerem um pouco.”

Um Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, PNPDC, está sendo elaborado em âmbito federal. A necessidade de uma iniciativa desse tipo foi identificada há mais de uma década, logo depois do grande desastre natural que atingiu sete cidades da região serrana do Rio de Janeiro, em 2011. No ano seguinte, aprovou-se uma lei determinando a criação do plano, mas nada aconteceu. Só em 2023 o tema foi retomado na Secretaria Nacional de Defesa Civil, Sedec, que está sob o guarda-chuva do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Dois diagnósticos importantes foram realizados desde então. O governo mapeou 1.942 municípios com populações alojadas em áreas suscetíveis a deslizamentos, enxurradas e enchentes, totalizando 8,9 milhões de pessoas altamente vulneráveis a desastres climáticos. Além disso, em parceria com o Centro de Pesquisa e Estudos Sobre Desastres da UERJ, o Sedec produziu cenários de risco de curto, médio e longo prazo para todo o país. Eles levam em conta não apenas modelos de mudança climática, como também um Índice de Capacidade Municipal, ICM, que verifica quanto as cidades estão aptas a lidar com desastres, e um Índice de Risco Qualitativo, IRQ, que leva em conta as potenciais perdas humanas e econômicas decorrentes de uma calamidade. Esses dados podem orientar os investimentos em prevenção, direcionando-os para as localidades com maiores riscos.

Não surpreende descobrir que a capacidade dos municípios brasileiros para enfrentar calamidades é, em geral, ruim. “A defesa civil de uma pessoa é uma realidade nacional”, diz Karine Lopes, diretora de articulação e gestão da Sedec. A situação se agrava com a baixa capacitação (às vezes até mesmo baixa escolaridade) desses responsáveis e com a falta de equipamentos básicos, como veículos ou até mesmo um computador. Mas seria errado concluir que equipes grandes e superequipadas de defesa civil garantem sozinhas uma resposta eficiente a emergências. Disseminar informação entre os moradores de áreas de risco, por exemplo, tem enorme importância. No ano passado, um tornado atingiu Santa Catarina. O evento foi previsto e houve alertas em tempo hábil. Ainda assim, houve feridos, por uma razão inusitada. “As pessoas não sabiam o que fazer com as informações que receberam”, diz Karine. “Algumas foram para a rua fazer filmes com o celular e acabaram se machucando.” O envolvimento dos cidadãos é crucial não apenas para remediar catástrofes, como mostram os inúmeros atos de solidariedade registrados no Rio Grande do Sul, mas também para manter os riscos no nível mais baixo possível.

Outro passo fundamental é aprender com os desastres. “Você não pode esquecer do assunto assim que a água vai embora”, afirma Karine. “É preciso verificar o que falhou, o que tem de ser feito de maneira diferente.”  As cidades de São Sebastião, no litoral norte paulista, e Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, exemplificam isso. Ambas adotaram sistemas de alerta com sirenes, depois de serem devastadas por chuvas. Quando elas são acionadas, os moradores se dirigem para “ilhas de segurança“.

Em São Sebastião, atingida por chuvas no carnaval de 2023, imóveis destruídos que estavam em áreas irregulares, nas encostas, não puderam ser reconstruídos. Conjuntos habitacionais foram erguidos em áreas planas para acolher os desabrigados. Outros prédios serão concluídos para receber famílias que ainda estão em zonas irregulares e sob risco de deslizamento. Casas serão demolidas e as encostas serão replantadas. A remoção dessa população, contudo, continua sendo um problema. No Brasil, é comum que pessoas que ocupam áreas de risco sejam protegidas pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público. “Nos imóveis irregulares, eles não precisam pagar impostos“, diz o prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto. “A pressão é tão violenta contra a mudança que, quando a fiscalização chega pela primeira vez, é preciso contar com escolta da Polícia Militar.”

Em Petrópolis, que sofreu seu pior desastre em 2021, foram instaladas cancelas automáticas que fecham o acesso de carros a áreas de risco em caso de chuvas fortes. A prefeitura também deu compensações financeiras para 245 famílias, cujas casas precisaram ser demolidas para dar lugar a obras de contenção das chuvas. Elas, assim, puderam erguer novas casas em locais seguros. O investimento, de 30 milhões de reais, foi feito com recursos da prefeitura. Cada família recebeu entre 90 mil reais e 230 mil reais, de acordo com avaliação do imóvel.

Algo semelhante terá de ser feito após a tragédia no Rio Grande dos Sul. Com base em um mapeamento de risco de todas as cidades, será preciso delimitar áreas que não poderão mais ser ocupadas. Alguns bairros talvez precisem simplesmente mudar de lugar. Outros só poderão seguir com moradores se algumas reformas forem feitas, como a construção de barreiras para evitar a entrada de água. Isenções temporárias de impostos, como o IPTU, poderiam ser uma maneira de viabilizar essas reformas.

No cenário pós-tragédia, é certo que haverá uma demanda enorme de recursos. Segundo cálculos divulgados pelo governador Eduardo Leite, a reconstrução pode custar 19 bilhões de reais. É provável que esse valor esteja subestimado. Mais de 400 escolas foram destruídas. Dezenas de pontes terão de ser refeitas. O sistema de barragens e comportas em várias cidades terá de ser reforçado. Milhares de moradias terão de ser construídas. Mas a reconstrução não pode ignorar a necessidade de proteger as pessoas do próximo evento climático. Em janeiro deste ano, o instituto Talanoa esmiuçou o Orçamento da União para identificar as verbas destinadas a ações nessa área. Da verba recorde de 13,6 bilhões de reais, 1,9 bilhão de reais tinham como finalidade a gestão de riscos e desastres. É pouco ou muito? Possivelmente pouco, mas não há parâmetros para definir o nível adequado de investimentos, o que por si só é grave. Criar sistemas de alertas eficientes e orientar a população sobre como se comportar em emergências, no entanto, são ações que dependem mais de vontade política e organização do que de dinheiro. A discussão sobre mudanças climáticas não pode se concentrar apenas em gases de efeito estufa ou hidrogênio verde. Precisa também dizer às pessoas para onde fugir na hora hora da calamidade.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. EXcelente matéria. Parabéns aos jornalistas. Me comoveu muito a reação do funcionário da METsul. Realmente não estamos preparados para catástrofes climáticas.

  2. Muitos não se preocupam com os eventos da mudança climática, e os que dizem se preocupar não se atentam a medidas práticas. Tomara que, em todos níveis, estatal ou não, acordemos para essa realidade que se impõe.

  3. Ontem vi uma rápida entrevista com uma moradora de uma cidade do interior do RS. Ela implorava por ajuda. Disse que todas as doações paravam em Porto Alegre. Ela pedia médicos e dizia que os ilhados estavam há cinco dias sem comer. Isso é apenas um detalhe sobre essa falha na organização do governo para tragédias como essa.

  4. Excelente reportagem. O ProClima do RS mostra bem a qualidade dos nossos líderes políticos: o importante é escrever aquilo que o eleitor quer ouvir, quando o necessário seria executar a obra que ele sequer sabia ser necessário. O Brasil é um país vulnerável a situações extremas com enchentes desde sempre, o problema envolve educação da população, política de moradia, combater proselitismo do MP, investimento em infraestruturas,etc, mas nada irá mudar. Apenas muito dinheiro irá ralo abaixo.

  5. Os governantes precisam levar o assunto a sério, mas parece que muitos não enxergam potencial eleitoral nesse tema

  6. Nossa gestão pública é especialista e participar de fóruns paravresolver as " grandes questões nacionais", de preferência em nababescos convescotes no exterior. Dinheiro para isso não falta.

Mais notícias
Assine agora
TOPO