Fellipe Sampaio/SCO/STF via Flickr

Presidencialismo de judicialização

Com desconfiança e estresse entre Executivo e Legislativo, é possível que o Planalto busque no STF o conforto que não acha no Congresso
08.12.23

Está reaberta a temporada de batismo do sistema político brasileiro. Depois do presidencialismo de coalização, de cooptação e do semipresidencialismo, é preciso achar um nome para um modelo baseado em uma forte aliança entre o Executivo e o Judiciário. Quem se arrisca a ser o padrinho da criança?

Com uma distância ideológica importante entre Congresso e Planalto e sem poder contar com o domínio do uso das emendas parlamentares para administrar uma base, todos se perguntavam no início de 2023 em quais termos a governabilidade seria negociada. Embora sob regras novas, marcadas pelo deslocamento recente do poder para o Legislativo, Lula tentou replicar mecanismos antigos, dividindo ministérios e recorrendo ao Centrão para construir maioria.

Com medidas importantes sendo aprovadas, como o novo arcabouço fiscal e a reforma tributária, além de itens da pauta arrecadatória do ministro Fernando Haddad, pode-se ter a impressão de que Lula conseguiu domar a fera. Mas trata-se de uma sensação equivocada. As pautas mais importantes foram de autoria próprio Legislativo e mesmo as vitórias celebradas pelo governo vieram recheadas de interesses dos próprios parlamentares.

Um sintoma dessa situação é a grande quantidade de vetos que se acumulou nesse período, isto é, decisões que o Legislativo tomou, que o Executivo não concordou, e que se tornaram impasses. Estão na fila regras fiscais, marco temporal, desoneração da folha trabalhista, regras de solução de litígios tributários, entre outros. Sem capacidade de manter os vetos, o governo vai conseguindo, no máximo, adiá-los, aumentando a pilha de assuntos não resolvidos.

Essa confusão acontece mesmo com o governo desembolsando o que pode de emendas e loteando a Esplanada e empresas públicas que parecem nunca serem suficientes. O estado de acomodação mínima existente em outras experiências de coalizão ainda não foi experimentado neste período. Com Lula sinalizando que fará uma reforma ministerial para aprovar sua agenda neste ano, pode-se claramente dizer que já está se gastando recursos de 2024 para pagar 2023 ou, em outras palavras, vendendo o almoço para pagar a janta.

A melhor maneira de entender as relações entre Executivo e Legislativo nesse contexto é ter em mente que ambos vivem um contexto de disputa pelo controle do Orçamento, eleições municipais de 2024 e em torno de pautas de políticas públicas, como é o caso da desoneração da folha. O equilíbrio só é obtido à base de uma custosa relação na qual o Congresso faz concessões na área fiscal enquanto recebe fatias do Estado, consegue emplacar interesses nas poucas MPs que avançam e luta para ampliar seu controle sobre as emendas.

Esse modelo já beira a exaustão. Um sintoma dessa situação foi a polêmica declaração dada em conversa recente com movimentos sociais na qual, incentivando-os a participar da política, o presidente disse que é preciso criar uma força para vencer o “poder Legislativo, o poder Executivo” porque “querer que uma raposa tome conta do nosso galinheiro é um pouco demais. Ao chamar o Congresso de raposa, Lula traça um panorama no qual ele não se sente no controle do país.

Nesse contexto, um cansaço em relação ao Legislativo pode levar o Executivo a aprofundar sua aliança com o Judiciário, que já é intensa. Antes mesmo de iniciar o governo, o STF cancelou as emendas de relator e autorizou o governo a furar o teto de gastos. Na véspera de sua aposentadoria, o ministro Ricardo Lewandowski suspendeu a Lei da Estatais, que impedia filiados de partidos em cargos de comando de empresas públicas. Recentemente, o plenário da Corte cancelou o marco temporal como regra de demarcação de terras indígenas, restringiu a lei de liberdade de expressão, atendeu a Fazenda no novo critério de remuneração do FGTS, restaurou a contribuição sindical e permitiu ao governo retirar despesas com precatórios do limite do arcabouço fiscal. Quando anunciou que Lula vetaria a desoneração da folha de pagamentos, Haddad sugeriu que irá recorrer ao STF para declarar a sua inconstitucionalidade caso a lei seja reestabelecida por deputados e senadores.

Com desconfiança e estresse entre Executivo e Legislativo, é possível que o Planalto busque no STF o conforto que não acha no Congresso. E não apenas para ter estabilidade em relação uma ameaça de impeachment, mas como suporte para tocar pautas de políticas públicas, matérias econômicas e fiscais.

Sinal do tempo, por esses dias, uma consultoria política foi procurada por uma multinacional interessada em entender tomadores de decisão. Após conversa de briefing, o potencial cliente revelou que, embora entender a cabeça dos parlamentares fosse importante, ela estava mais interessada em pesquisar juízes. Seu problema não era judicial, mas os magistrados, em sua visão, eram os que mais influenciavam a previsibilidade do seu ambiente regulatório.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor da VectorRelgov.com.br

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Um estado que apresenta tamanha esquizofrenia, em que um poder que deveria ser independente e distante da criação e da execução das leis, se imiscui constantemente na disputa legítima entre poderes, sendo provocado (ultrapassando seus limites) ou por própria iniciativa (algo único) tem que futuro?

  2. Pelas características do Descondenado e sua corja e também das altas cortes pode-se dar o nome de "promiscuilismo ou promiscuidadismo". Note-se a escala de decadência moral que o país vem sofrendo.

Mais notícias
Assine agora
TOPO