Governo de SP via FlickrA estátua de Borba Gato em São Paulo, em foto durante a pandemia. Lei carioca permitiria sua existência?

A guerra civil dos vivos contra os mortos

Continua a batalha contra aqueles que não se ofendem, não podem ser humilhados, encarcerados, feridos, ou mortos mais uma vez
08.12.23

Franklin de Oliveira relata no livro Morte da Memória Nacional que na Guerra Civil Espanhola os dois lados concordaram em preservar o Museu do Prado. “Os vivos se destruíam mas, enquanto vivos, procuraram salvar a obra dos mortos”, diz ele. Só que no Brasil, ele afirmava em 1967, estamos numa guerra civil às avessas: os vivos destruindo o legado dos mortos.

Foi aprovada no último dia 29 pela Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro uma lei que proíbe manter ou inaugurar monumentos em homenagem a “escravocratas, eugenistas e pessoas que tenham violado os direitos humanos”.

Por causa da lei, o busto do Padre Antônio Vieira será removido dos jardins da Pontifícia Universidade Católica, PUC, do Rio de Janeiro, onde está desde 2011.

Em 2022, a cidade de Olinda (PE) aprovou lei semelhante proibindo homenagens a escravocratas e a pessoas ligadas à ditadura militar. “A norma também permite a modificação de nomes de ruas ou espaços públicos que, atualmente, reverenciam personagens do passado”, como informa uma matéria do G1.

Como se vê, de 1967 para cá, continua a guerra dos vivos contra os mortos. Franklin de Oliveira permanece perfeitamente atual. 

Em filmes de zumbi, os mortos atacam os vivos. No Brasil, tem sido exatamente o contrário: os vivos atacam os mortos. Incendiaram a estátua de Pedro Álvares Cabral em 2021, no bairro da Glória, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, incendiaram a estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo. Nos 131 anos da abolição da escravatura, movimentos sociais de esquerda protestaram contra a princesa Isabel, especificamente na sessão feita por seu descendente, o deputado Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP), que foi o primeiro membro da família imperial a ocupar um cargo no Congresso da República.

A questão é que os mortos não se ofendem, não podem ser humilhados, encarcerados, feridos, ou mortos mais uma vez. Ao mesmo tempo, a influência dos mortos não se dá apenas através dos símbolos que lembram a sua existência, os bustos ou estátuas, ou até mesmo os livros.

Auguste Comte está correto quando diz que os vivos são governados pelos mortos. E Olavo de Carvalho acrescenta: “O velho Auguste Comte talvez nem imaginasse que ele próprio viria a ser um dos defuntos mais mandões.”

Usamos a língua por eles criada, vivemos numa cultura moldada pelas gerações anteriores, num Estado criado pelos antepassados.

Também num sentido psicológico os mortos governam os vivos. O psicanalista húngaro L. Szondi criou uma teoria chamada Análise do Destino depois de analisar a árvore genealógica de centenas de pacientes. Ele chegou à conclusão de que existe um fator que exerce pressão sobre o homem: a pretensão dos ancestrais.

Para ele, além do inconsciente pessoal de Freud (Szondi foi discípulo de um aluno direto de Freud), e do inconsciente coletivo junguiano, haveria uma terceira camada, o inconsciente familiar. Szondi formulou a seguinte hipótese: “padrões familiares inconscientes antigos preparam as escolhas dos descendentes”.  E isso se aplica em diversas áreas como casamento, escolha da profissão e até mesmo as doenças. É o que Szondi chama de genética do destino – sendo que destino, para ele, é o conjunto de possibilidades da vida.

Não é fácil livrar-se do passado ou da influência daqueles que nos precederam na Terra. Bem dizia o teólogo russo Pavel Florenski que a humanidade é um todo, não só no espaço, mas também no tempo.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista e escritor

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  1. Esta é a cultura do "cancelamento", perseguida obsessivamente pela esquerda identitária. Da "lacração" das ideias dos diferentes. Para eles, monumentos como o Partenon de Atenas deveriam ser derrubados, pois uma das características da Grécia era o de ser uma nação escravagista. E nada mais. Mentes de visão pequena, muito limitada.

  2. Não há problema nenhum termos ruas com o nome de pessoas odientas como Adolf Hitler, Josef Stalin, mas é bom um pequeno histórico abaixo como "ditador sanguinário" ou "genocida". Poderia colocar numa placa de Bolsonaro "terraplanista antivacina". A História é feita por alguns heróis e muitos vilões.

  3. Excelente. Os mortos devem ser ouvidos pois têm a ensinar tanto o que devemos copiar como o que devemos evitar. Assim se constrói, no tempo, uma sociedade mais próspera. Todavia, a mentalidade revolucionária exige sempre erguer uma nova sociedade sobre os escombros do que ficou para trás.

  4. Não sei onde vão encontrar essas pessoas sem pecado pra homenagear com uma estátua. Atualmente nenhuma pessoa pública importante, intelectual, artista, etc. se manifesta a favor das vítimas dos comandos do tráfico no RJ - quantos são as vítimas (desaparecidos, torturados, expulsos, mortos) nem sabemos. Então imagino que no futuro a história vai cobrar dos intelectuais atuais seu silêncio diante desse massacre. Por isso digo que, pelos critérios que estão exigindo, ninguém vivo merece estátua.

    1. Concordo. Mas, infelizmente, alguns vagabundos que estão hoje no poder, ou próximos a ele, vão ganhar as suas. A começar pelo maior de todos no Brasil. Ele mesmo, o Lula. Pode ter certeza que, no dia em que esse miserável se for (para o inferno, só com passagem de ida), muitos canalhas vão querer homenageá-lo.

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