DivulgaçãoJohn Gielgud como Próspero, em "A Última Tempestade"

Nossa inesgotável porção de trevas

Uma fala enigmática de Próspero, o mago de A Tempestade, última peça de Shakespeare, lança luz sobre a farsa política brasileira 
01.12.23

…E assumo que é minha
Esta porção de trevas.”

Quem fala é Próspero, conjurador de forças sobrenaturais e duque deposto de Milão. Ele se refere a Calibã, criatura que encontrou na ilha onde vive exilado. Filho da feiticeira Sycorax, Calibã tem porte e sentimentos humanos, mas sua aparência faz lembrar um peixe.

This thing of darkness/ I acknowledge mine” é a frase no original. Acima, citei essa passagem de A Tempestade na excelente tradução de José Francisco Botelho, publicada pela Penguin/Companhia das Letras. No ato final desta que é a última peça de William Shakespeare, Próspero reconhece Calibã diante de um grupo de nobres cujo navio naufragou perto da ilha. O monstro vem acompanhado de Trínculo e Estéfano, serviçais dos nobres. O trio havia tramado assassinar Próspero para tomar seus domínios.

Na aparência, Próspero limita-se a esclarecer quem é dono de quem: Calibã, como tudo na ilha, é propriedade sua, enquanto Estéfano e Trínculo pertencem aos recém-chegados. Mas o sentido das palavras em Shakespeare nunca é tão estrito. Enredado na dialética do senhor e do escravo, Próspero assume como sua a escuridão do servo que, no passado, tentara estuprar Miranda, sua filha e única companhia no exílio.

Todos têm sua porção de trevas. Poucos a reconhecem.

***

Um episódio em que será difícil encontrar porções de luz: a morte de Cleriston Pereira da Cunha no Complexo Penitenciário da Papuda, no mês passado. Bolsonarista que integrou a Horda Canarinha na invasão de Brasília, ele participou da depredação do Congresso, de acordo com a denúncia do Ministério Público Federal. Sofria de vasculite, condição que tornava perigosa a permanência no regime fechado.

Morte miserável, sem som nem fúria, sem areté.

(“O mal que os homens fazem vive sempre, / Mas o bem é enterrado com seus ossos”, ensina um grande orador em outra peça de Shakespeare.)

Alexandre de Moraes exigiu explicações da penitenciária, o que é justo. Alexandre de Moraes é ministro do Supremo Tribunal Federal, a Corte que, dizem os brasileiros de bem, tem servido como guardiã de nossa democracia.

Desde o início de setembro, uma manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR) em favor da liberdade provisória de Cleriston estava na mesa de Moraes, sem que ele tomasse uma decisão a respeito. Tinha tarefas maiores. O STF, dizem os mais excelsos juristas, zela por nossas instituições democráticas.

Depois da morte na Papuda, Moraes concedeu liberdade provisória a um punhado de presos. Um deles se chama Geraldo Filipe da Silva e, de acordo com a PGR, não cometeu crime algum: era um morador de rua que, no 8 de janeiro, teve a má ideia de ver que barulheira era aquela na Praça dos Três Poderes. Chegou a apanhar de bolsonaristas que o tomaram por “infiltrado do PT“. Ficou dez meses preso porque o confundiram com seus agressores.

Mas o STF salvou nossa democracia.

***

Senhor dos elementos, foi Próspero quem chamou a tempestade que trouxe os náufragos às praias de sua ilha. Ansiava por vingança: no navio apanhado pelo mar proceloso, estava seu irmão Antônio, que lhe usurpou o ducado de Milão, e Alonso, rei de Nápoles, que apoiou a deposição do duque legítimo. No final da peça, porém, o mago perdoa os traidores.

A conspiração do deformado Calibã com os embriagados Estéfano e Trínculo era um plano tonto, com possibilidade quase nula de sucesso. Ainda assim, o pobre monstro não recebe a indulgência estendida aos nobres. Próspero condiciona seu perdão ao cumprimento de tarefas servis: ordena que Calibã arrume os aposentos onde os hóspedes serão recebidos. Punir antes de perdoar.

A intentona bolsonarista do 8 de janeiro tinha ainda menos chance de dar certo que a conjuração do monstro e dos bebuns. Eu poderia desenhar aqui uma analogia bem óbvia entre os dois golpes frustrados. Não o farei porque na farsa brasileira não há ninguém digno de ocupar o lugar de Próspero.

Sequer temos quem mereça o papel de Calibã.

***

Luís Roberto Barroso tampouco quis reconhecer a porção de trevas que cabe ao STF: ao lamentar a morte de um cidadão que se encontrava “sob custódia do Estado brasileiro”, o ministro fez questão de observar que o Judiciário não administra o sistema penitenciário.

Sua alusão às cronicamente tenebrosas condições das prisões brasileiras pode ser diversionista – pois negligencia o fato de que a liberdade provisória de um preso de saúde frágil dependia de um ministro do STF –, mas não é despropositada. A infeliz morte de Cleriston recoloca em pauta um problema que a direita bruta sempre desprezou.

O deputado Jair Bolsonaro chegou a dizer que o presídio de Pedrinhas, famoso pela mortandade de internos em rebeliões, era “a melhor coisa do Maranhão”. “É só você não estuprar, não sequestrar, não praticar latrocínio que tu não vai para lá. Vai dar vida boa para aqueles canalhas?”, declarou ele em 2014. Por ironia (e por hipocrisia), o bolsonarismo agora fez de um presidiário o seu mártir.

O bolsonarismo é muito mais do que uma porção de trevas.

***

Em um ensaio sobre A Tempestade, Northrop Frye arrisca uma especulação instigante: a “capacidade de ver a humanidade de Calibã” não valeria por um “teste de caráter”? Antônio, o mais rematado mau caráter da peça, aventa a ideia de vender a criatura: “É peixe até a espinha, e me parece negociável no mercado”.

O crítico canadense também sugere que a frase em que Próspero assume o monstro como sua porção de trevas é, no limite, indecifrável. Mas acredito que, em uma leitura moderna (e, admito, pouco compatível com o universo social da peça), aceitar Calibã como um de nós talvez seja reconhecer a humanidade até de quem atenta contra a humanidade. E para aqueles que ocupam posições de mando, admitir sua porção de trevas exige compreensão de que o combate à tirania pode converter o próprio combatente em tirano.

Ao fim de A Tempestade, Próspero renuncia a seus imensos poderes.

 

Jerônimo Teixeira é escritor e jornalista

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  1. É impossível parar quem age tomado de certeza de, não só estar agindo corretamente, mas estar agindo em prol de um valor maior. E assim nascerá um tirano, rico de poder e cego para suas próprias arbitrariedades pois que são cometidas justamente

  2. Alexandre de Moraes e seu defensor e Luís Roberto Barroso levarão para o resto de suas vidas a responsabilidade por essa morte evitável. Mais uma prova da incompetência e nenhuma sabedoria reinante no STF. Muito triste.

  3. Uma forma elegante de mostrar como agem os togados. Se acham mesmo integrantes dos Arautos da Lei e da Ordem.

  4. Como Freud perguntou a Dora, uma de suas mais famosas pacientes: "qual sua responsabilidade nisto de que reclamas"? Pois é. Resumindo bem resumido toda a obra de Freud, fica: "não existem mocinhos em história alguma" Pois é

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