Arquivo/Museu da ImigraçãoImigrantes japoneses em uma hospedaria de São Paulo, em foto de 1936

O ponto de fusão

A ascendência dos imigrantes teve um peso relativamente menor na definição das grandes linhas da política externa. Todos são basicamente brasileiros
08.12.23

A história da humanidade, desde tempos imemoriais, é formada por um cadinho e por um turbilhão de povos, de culturas e de influências recíprocas, ainda que assimétricas por sua própria natureza: expansão demográfica natural, dominação violenta por hordas de invasores militarmente superiores, emigração voluntária ou forçada, epidemias e endemias seguindo as trilhas da inovação técnica e da disseminação de espécies vegetais e animais mais produtivas. Esse processo durou milhares de anos, e continua de maneira intensa nos nossos dias, com as novas facilidades de transportes e comunicações; mas a marcha a pé, dos campos para as cidades, de uma região a outra, ainda continua a ser a forma mais usual de transmigração.

Darcy Ribeiro, em suas obras sobre o processo civilizatório, fazia uma distinção entre povos historicamente ancestrais, os da Eurásia e da África, e os “povos novos”, que seriam os que resultaram das grandes navegações a partir daquele grande continente e o espraiamento de seus contingentes humanos sobre o “Novo Mundo”, aberto aos europeus desde as primeiras “descobertas” de vikings e de Colombo. Os “ancestrais” do hemisfério americano foram sendo subjugados, eliminados ou transformados pela supremacia das armas e das técnicas: alguns dos ocupantes originais permaneceram, onde sua densidade demográfica e avanços materiais estavam consolidados, comparativamente ao destino mais infeliz daqueles povos ainda situados no paleolítico ou no neolítico superior.

A conformação de alguns desses “povos novos” é caracteristicamente imigrante, a partir de suas fontes europeias, a América do Norte, Brasil e Argentina ao sul, Austrália e Nova Zelândia no Índico. A Argentina foi, proporcionalmente, o povo mais “importado” do mundo, ainda que os Estados Unidos, numericamente, sejam os campeões absolutos no seu componente imigratório. O Brasil ficou fechado ao mundo, por decisão da metrópole durante os primeiros séculos, mas também recebeu levas de imigrantes a partir do final do século 19 e início do seguinte. Antes dos europeus, japoneses, médio-orientais, armênios e tutti quanti integraram essas levas de trabalhadores incansáveis, os “cristãos novos” já tinham colorido o tecido social originalmente apenas lusitano. Voltaram, mais tarde, com novas diásporas produzidas pelo antissemitismo europeu, aliás precedidos pelos expelidos pela crise do Império Otomano, mais de cem anos atrás. O Brasil foi feito basicamente pelos imigrantes, crescentemente diversificados, mais até do que pelos portugueses, o tronco humano central, mas provavelmente não o mais produtivo ou empreendedor neste último século. Integrados e misturados ao substrato colonial, já naturalmente mesclado, esses imigrantes foram decisivos na construção da nação, antes de serem influentes no governo e na política, desde as décadas de modernização econômica e social da era Vargas (que se confunde com o meio século de grandes transformações culturais e materiais desde a Revolução de 1930). Dificuldades e percalços nas políticas domésticas a partir dos anos 1980 reduziram o formidável ímpeto do crescimento econômico nacional, quando o mundo, superada a grande divisão ideológica do imediato pós-Segunda Guerra, ingressava justamente em nova onda globalizadora, que impactou sobretudo antigos povos asiáticos, submetidos durante alguns séculos à hegemonia europeia. A Ásia-Pacífico inverteu posições com a América Latina, no comércio mundial, na tecnologia nos trinta anos seguintes à descolonização de velhos impérios europeus.

O Brasil continuou relevante na América do Sul por seu próprio peso específico no continente, não exatamente por um dinamismo extraordinário: mesmo na retomada de taxas de crescimento mais robustas, no começo do milênio, sua expansão média ficou abaixo da América Latina, abaixo da média mundial e três vezes menor que a dos emergentes mais dinâmicos da Ásia Pacífico. Mas os nomes dos imigrantes são cada vez mais visíveis na política interna, nos empreendimentos econômicos e até na política externa, com destaque para os levantinos, influentes pela riqueza, pela participação nos negócios e na governança.

Os judeus, povo martirizado no Holocausto de meados do século passado, voltam novamente às primeiras páginas dos jornais, não mais por uma nova Intifada contra sua nação recriada, mas por uma verdadeira tentativa de eliminação do Estado e de todo o seu povo por um movimento terrorista dispondo de poderosos apoios na região e fora dela. Por razões não de todo racionais no âmbito da política interna, o Brasil ficou dividido nessa nova onda de antissemitismo explícito, mais ainda do que nos sombrios anos 1930, quando relutou de forma mesquinha em acolher os perseguidos pelos pogroms nazistas. Bandos de alucinados chegaram a manifestar apoio aos perpetradores de ataques terroristas contra o povo judeu, em Israel e mundo afora. Não se trata exatamente do componente árabe ou muçulmano integrado à população brasileira, mas de uma espécie de reflexo de deformações políticas incorporadas à política externa desde algum tempo, por acaso coincidente com as escolhas ideológicas do partido que controla temporariamente o governo.

Depois de muito tempo hegemonizada pelas oligarquias dominantes no Império e na República Velha, a diplomacia brasileira recebeu o aporte de imigrantes árabes e judeus em seu corpo profissional. Mesmo de fora da carreira, dois judeus de sobrenome Lafer, tio e sobrinho, ocuparam a chefia da diplomacia a meio século de distância. Ambos tiveram posturas impecáveis na condução geral da política externa, inclusive com respeito aos dramas humanos e diplomáticos que continuaram agitando o Oriente Médio, desde muito tempo e novamente no período recente. Celso Lafer, por sinal, contou com a preciosa ajuda de um descendente de libaneses na secretaria geral das relações exteriores.

Na verdade, a ascendência étnica e cultural de muitos imigrantes na política brasileira teve um peso relativamente menor na definição das grandes linhas da política externa do país, dada a quase total integração desses “importados” ao mainstream da governança nacional. Todos, agora, são basicamente brasileiros, pelos hábitos e pela cultura, mais do que outras comunidades de “oriundi” em diversos outros países, que conservam comunidades agregadas pela língua, pela religião e pelos costumes. Festas, futebol e comidas mesclaram quase todos os povos que aportaram no Brasil desde a República laica, mas profundamente religiosa.

Eventuais divisões decorrentes de preferências políticas relativamente sectárias serão provavelmente passageiras, superado o grande drama que agita novamente o Oriente Médio. As duas comunidades temporariamente em confronto de opiniões não contaminarão de forma excessiva a diplomacia profissional, nem conseguirão infletir a postura sempre equilibrada da política externa vis-à-vis conflitos no cenário mundial. Nunca fomos atingidos por qualquer “choque de civilizações”, nem o drama atual importará ódios manifestados em outras partes do mundo. O “melting pot” brasileiro, basicamente o ponto de fusão racial e cultural, é resiliente a ponto de diluir fricções existentes no exterior. Somos todos imigrantes perfeitamente integrados.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata, professor e escritor

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