Disney/ReproduçãoFaça um pedido: solução simplória de cotas para mulheres em partidos não resolve o problema

O eterno conto de fadas das cotas-placebo

Se a presença feminina em cargos tornar-se uma obrigação, sem que seja um desejo genuíno dos partidos incluí-las nas decisões, deveremos ver esposas, filhas e sobrinhas servindo como laranjas
08.12.23

Você está doente. Receitam a você um remédio. Ele não surte efeito. Você segue doente. Então receitam de novo o mesmo remédio. Você tomaria? É isso que a política tradicional segue tentando fazer para termos mais mulheres na política partidária.

Com eleições municipais se aproximando, a preocupação com a representação feminina na política volta a ganhar destaque. Recentemente, o W.Lab, fruto da parceria entre os institutos Locomotiva e Ideia, divulgou uma pesquisa que evidencia a disparidade de gênero no mercado de trabalho. Nesta semana, em uma live sobre a participação das mulheres na política com os autores da pesquisa, ressurgiu o debate em torno de uma proposta da então senadora Simone Tebet, que propõe a criação de uma cota de 30% para mulheres nas estruturas partidárias. A lógica é a mesma das cotas exigidas nas chapas eleitorais, discutida em artigo anterior.

Nós já vimos esse filme. Justamente por isso pergunto de novo: essa é a melhor solução para trazer mais mulheres aos espaços de decisão? Essa é mais uma ação vertical na tentativa de solucionar um problema extremamente complexo com uma medida aparentemente simples. Quase simplória. É óbvio que precisamos de mulheres na política. Não se questiona isso. Mas mais uma cota, agora nas instâncias partidárias, garantiriam a elas o poder de tomada de decisão, de influência? Entendo que isso deve ser feito de uma maneira real e não mais decorativa.

A live, a pesquisa e a proposta de Tebet têm razão quando concluem que a política se faz nas esferas partidárias. Ela precede toda e qualquer eleição, especialmente quando da formação das nominatas das chapas proporcionais. Vale destacar, aqui, a teoria do peixe, da ciência política, que afirma que uma chapa partidária é como se fosse um peixe, composta pela cabeça, corpo e cauda. Se uma cadeira municipal em determinado município custa 20 mil votos, e se o partido estima que deve conseguir 100 mil votos, o partido assume então que deve conquistar 5 cadeiras e, com isso em mente, constrói sua chapa deixando os 5 nomes mais competitivos na “cabeça da chapa”, para serem favorecidos com recursos, tempo de TV e espaço em eventos. O corpo do peixe será formado por aqueles candidatos que, embora façam uma quantidade razoável de votos, terão poucos recursos, servindo apenas para impulsionar a cabeça do peixe formada pelos candidatos a serem eleitos. E, por fim, temos a cauda do peixe, composta por aqueles que entram apenas para fechar o quórum ou cumprir cotas eleitorais, fazendo pouquíssimos votos e não recebendo quase nada de recursos. Aqui chegam com toda força os laranjas. São muitas as mulheres que se enquadram nesse cenário. “Ah, mas tem cota de fundo eleitoral para mulheres”. Sim, tem. E elas recebem e depois pagam as contas das candidaturas de homens. Geralmente aqueles que estão na categoria “cabeça do peixe”.

Será que funciona o sistema de cotas? Por que nas instâncias partidárias funcionaria de forma diferente dos laranjais eleitorais?

Não basta caneta na mão e nome na diretoria se o poder das decisões permanecerá nas mãos dos mesmos indivíduos. Se a presença feminina em cargos tornar-se uma obrigação, sem que seja um desejo genuíno dos partidos incluí-las nas decisões, deveremos ver esposas, filhas, sobrinhas e afins servindo como laranjas. O que realmente a política brasileira precisa são mulheres contribuindo com ideias e desenvolvendo estratégias junto aos seus partidos para integrarem efetivamente o sistema. Ou mudamos o sistema, ou cotas e mais cotas surgirão como placebo.

É claro que estamos tratando de um processo de longo prazo. Mas é fundamental que a transformação ocorra de fora para dentro do sistema, ou seja, com pressão constante da sociedade. “Ah, mas sem cota isso é utopia!” Não! É uma questão de vontade partidária. De compromisso. De valores. Em Luziânia, Goiás, o diretório municipal do partido Novo é composto 100% por mulheres. Mais um exemplo vem da direita: o mesmo partido, em 2020, em Curitiba, elegeu uma bancada exclusivamente feminina.

Se a gente quer curar o sistema político brasileiro, a gente precisa mudar o remédio. Os usados até hoje não geraram o impacto necessário. Pelo contrário: o remédio dado esconde os sintomas, deixa o paciente achando que está melhorando e tudo não passa de uma grande ilusão. O fim, todos conhecemos.

 

Anne Dias é advogada, presidente do LOLA Brasil, diretora do Programa de Núcleo do LOLA Internacional (LOLA – Ladies Of Liberty Alliance)

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  1. As quotas não resolvem problema algum, mas é uma proposta que pretende apresentar uma solução rápida e que é muito boa de se levar no bolso quando se for fazer a próxima campanha.

  2. Os caciques dos partidos têm suas preferências e muitas vezes dirigem suas escolhas para serem privilegiadas com recursos. Daí fica difícil pro eleitor, que fica sem opções pra escolher um candidato não capturado e muito menos do sexo feminino

  3. A escória política que domina o congresso ( e as verbas partidárias ) muito dificilmente vai largar o osso. As mulheres precisam lutar mais ainda se quiserem maior participação.

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