Flickr/AlwaysShootin New YorkNova York: fundos imobiliários movimentam diariamente 300 bilhões de dólares

Risco moral

O governo brasileiro segue insistindo na ideia de que premiar maus pagadores é uma boa forma de tornar o país mais rico, através do consumo
01.12.23

Lewis Ranieri é uma das figuras mais relevantes e emblemáticas do século 20, ainda que seu nome não seja reconhecível por 99.99% da população mundial.

De origem ítalo-americana, Lewis é conhecido hoje como pai dos “créditos com garantia em hipotecas”.

Em suma, Lewis criou um instrumento que permitiu transformar o entediante mercado de financiamento imobiliário em um colosso de US$12 trilhões, que movimenta diariamente 300 bilhões de dólares, ou um quinto da riqueza produzida pelo Brasil em um ano.

Esse mecanismo alterou a forma como o crédito imobiliário é organizado.

Antes, pequenos bancos regionais pegavam recursos de poupadores e emprestavam para que famílias pudessem financiar suas casas.

Com Lewis, os bancos regionais passaram a transformar esses empréstimos em títulos, vendendo esses títulos para outros investidores que pagavam adiantado para receber o fluxo de pagamentos dos financiamentos imobiliários. Assim, os bancos podiam emprestar novamente.

Esses investidores, por sua vez, criavam títulos baseados nos títulos que haviam comprado, repassando os rendimentos, e os riscos, aos novos investidores.

Esse mercado foi evoluindo assim até que, por volta de 2008, existiam cerca de 600 trilhões de dólares em dívidas sendo negociadas. Mais ou menos o mesmo valor que o PIB mundial, multiplicado por dez.

Quando o mercado americano se deu conta de que havia emprestado dinheiro aos chamados “NINJAs” (no income, no job, ou “sem renda e sem emprego”), a coisa já era tarde demais. Bastou que uma pequena fração das hipotecas deixasse de ser pagas para que tudo desmoronasse. O primeiro colapso no mercado imobiliário americano em mais de 150 anos.

E foi assim que o mundo inteiro colapsou na maior crise desde 1929.

Foi assim que aposentados na Alemanha ficaram sem suas aposentadorias, e que brasileiros perderam seus empregos.

Mas, afinal, o que deu errado?

Em suma, o castelo de cartas montado por Lewis, e aprimorado com entusiasmo por outros tantos que recebiam gordas comissões cada vez que os títulos trocavam de mãos, era mantido sob a perspectiva de que o risco sempre poderia ser repassado.

Dezenas de agentes passaram a ser apenas atravessadores que vendiam o produto final aos poupadores alemães (e japoneses, ingleses etc). E esses por sua vez ainda podiam repassar o risco a uma seguradora, como a AIG.

Certa de que o mercado imobiliário americano nunca havia sofrido uma retração relevante, a AIG topava receber uma comissão de 1 dólar para garantir que 100 dólares seriam pagos se tudo desse errado.

Na economia, o nome disso tudo é “risco moral”: quando agentes tomam risco além do necessário, certos de que outra pessoa irá pagar o prejuízo.

Neste caso, eles estavam completamente certos. O otário em questão, foi o pagador de impostos americano, que resgatou os bancos sob o argumento de que a falência do sistema financeiro representaria um risco muito grande para a sociedade.

O risco moral é uma proposição econômica vista pela primeira vez no século 19.

Naquela época, as seguradoras atribuíam a fraudes e comportamentos negativos dos segurados o que chamavam de risco moral.

Com Kenneth Arrow, prêmio Nobel de economia, este dilema se tornou menos “moralista” (com o perdão da piada). O viés teológico por trás do pecador que cometia fraude deu lugar ao desenho das estruturas e incentivos.

O problema, segundo Arrow, está na forma como os incentivos são montados, de modo que o risco possa ser repassado.

E este é um problema crucial em inúmeras áreas, não apenas em relação ao sistema financeiro.

É o que os brasileiros conhecem pela “Lei de Gerson”, onde levar vantagem em tudo é algo positivo.

Este problema se torna ainda mais danoso, porém, quando envolve políticas públicas.

Imagine uma política pública desenhada para incentivar as pessoas a consumirem determinado bem ou serviço.

Essa política incentiva a população por meio de juros menores. Este diferencial de juros será pago por toda população. Mas ignore isso, por enquanto.

Imagine que o tomador de crédito saiba que nenhum mal lhe ocorrerá se incorrer em calote.

Isso por si só já seria terrível. Pessoas deixando de quitar seus compromissos é algo moralmente ruim.

Mas imagine não apenas que isso ocorra, mas que o governo decida premiar a todos com um perdão.

Quem pagou em dia, tudo certo. Quem não pagou, também está perdoado.

Qual seria seu primeiro pensamento caso você fosse um dos brasileiros que tomou crédito e pagou em dia o FIES,  digo, este crédito aleatório e completamente fictício que inventamos aqui?

Bem, não lhe conheço, mas aposto que no mínimo você se sentiria um grande otário.

É provável que ao externar isso, você ainda seja taxado de insensível, dado que deveria estar feliz, pois “todos foram beneficiados!”.

Pois bem, fato é que não apenas você foi sim trouxa de pagar em dia, como o governo brasileiro não parece se importar.

Para o governo brasileiro (não apenas o atual, apesar do esforço), o perdão de dívidas é uma forma bastante popular de angariar apoio.

Basta você contar a Pedro que irá dar um grande benefício a ele. Mas claro, isso só funciona se você não for contar ao João que ele irá pagar este benefício do Pedro.

Dentre as medidas adotadas no ano eleitoral de 2022, esteve o perdão de dívidas do Fies, que o jovem “fazuelli” hoje agradece a Lula.

Muito mais comum, porém, é o chamado Refis.

Em resumo, todo governo adota uma prática de chamar devedores de impostos para renegociar suas dívidas, prometendo que terão um prazo longo e abatimento dos juros. Isso ajuda a levantar recursos rápido no curto prazo.

No longo prazo, porém, o que você está dizendo aos empresários é: não pague seus impostos agora. Aguarde o próximo Refis.

Esse risco moral é um ciclo vicioso, na medida em que o populismo se beneficia de atitudes como essas para se manter vivo.

O problema, claro, é o que Bastiat descrevia lá no século 18: o Estado é a grande ficção onde todos tentam viver as custas de todos.

Um líder populista irá facilmente ludibriar a população garantindo que outras pessoas irão pagar por você, ao passo em que bate sua carteira para pagar a promessa que fez a outro.

Este risco moral é uma das bases podres sobre a qual insistimos em tentar erguer uma sociedade saudável. Dizer não a ele, claro, é algo difícil, mas necessário.

Não há mal algum em um governo democraticamente eleito propor políticas sociais. Distribuir casas, ou bolsas em universidades. Mas há, em situações saudáveis, um processo para isso.

Primeiro, o governo faz um projeto. Em seguida, leva ao Congresso e expõe os custos. Os Congressistas por sua vez discutem dentro do que há disponível de orçamento se aquilo é prioridade. Por fim, se aprova e se executa o projeto.

É simples assim. E já fizemos isso, há não muito tempo. Em 2017, quando propuseram mudar a taxa de juros que regia os empréstimos do BNDES, a equipe econômica frisou a relevância de tornar os custos deste empréstimos (estimado em R$300 bilhões), algo transparente.

Os subsídios deixaram de estar escondidos no custo da dívida e foram tornados claros. Gastávamos por volta de R$30 bilhões por ano subsidiando as 1000 maiores empresas do país em seus empréstimos. O mesmo que o Bolsa Família garantia na época para os 12 milhões de pobres e miseráveis do país.

E foi tornando claro o custo que o Programa de Sustentação do Investimento, foi extinto de vez.

Já fizemos e podemos fazer de novo. Isto, claro, se realmente queremos construir uma sociedade que não necessite de Desenrola.

 

Felippe Hermes é jornalista

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  1. Excelente artigo! O perdão de dívidas já é tradição no nosso país. Como citado, quem paga todos os seus débitos fica se sentindo um otário.

  2. Excelente artigo. Uma aula realmente. Sugiro que o jornalista possa explorar mais esta pauta, pois estão vindo mais e mais "benefícios" sociais e empresariais por aí. Seria bom fazer uma série de reportagens que fosse aos poucos abordando todos eles.

  3. Um texto soberbo que aborda temas complexos de maneira de fácil compreensão. A crise de 2008 foi o avatar da vitória da elite financeira sobre o povo: este último, ignorante, engoliu pagar para reconstruir o mesmo castelo de cartas cuja ruína arrasou sua vida, sem punir ninguém nem mudar a forma como o próximo castelo seria construído. Quanto às políticas sociais em países fracassados, enquanto houver escusa para vender o perdão fiscal como virtude moral seremos sempre esse fracasso.

  4. Realmente estamos cercados por propostas populistas que só criam e ampliam desigualdades. Difícil sair desse ciclo vicioso

  5. Felippe, esse seu artigo é fantástico. Gostaria de estar assistindo numa palestra para que fosse mais profundo e permitisse perguntas.

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