Foto: Marinha do Brasil via FlickrFuncionário passa o crachá sob a vigilância atenta de militares

Teatro do improviso

Atuação de militares na GLO de portos e aeroportos tem chance nula de reduzir a criminalidade do país
10.11.23

Esta semana foi de intenso trabalho para as Forças Armadas brasileiras. Um blindado com dois soldados armados de fuzis foi estacionado ao lado de um guindaste para carregar navios. Outros se colocaram diante do Museu do Amanhã, obra do arquiteto Santiago Calatrava, cartão-postal do Rio de Janeiro. Fuzileiros monitoraram funcionários que passavam seus crachás em catracas de algum escritório. Um jipe foi içado ao convés de um navio da Marinha. Mergulhadores inspecionaram cascos de embarcações. No Porto de Santos, em São Paulo, cães farejaram os pneus enormes de um caminhão articulado. Cerca de 600 militares da Aeronáutica foram deslocados para caminhar entre os passageiros nos aeroportos de Guarulhos e do Galeão. O mais surpreendente, contudo, não foram essas cenas insólitas, e sim o propósito delas. No decreto que instituiu a operação de Garantia da Lei e da Ordem, GLO, falava-se em deslocar os militares para “espaços com grande atuação das organizações criminosas, com fortes repercussões em metrópoles brasileiras”.

O jogo de cena, é claro, em nada afetou a realidade das cidades que mais sofrem com o crime organizado. A operação não incluiu os onze estados com as maiores taxas de homicídios do país, os quais ficam todos nas regiões Norte e no Nordeste. Em vez disso, concentrou-se boa parte das manobras em um estado com bons indicadores de segurança, São Paulo. Outro paradoxo é que a GLO, um expediente pensado para intervir nos estados em crise quando seus meios de segurança estão esgotados, foi decretada para atuar em áreas de competência da União, como o combate ao tráfico de drogas e de armas, em instalações administradas por organismos federais. É uma intervenção federal em operações federais que ocorre em instalações federais. “É como se o governo em Brasília decretasse o esgotamento dos próprios meios para ele mesmo intervir”, diz o coronel Araújo Gomes, ex-comandante da Polícia Militar de Santa Catarina.

O argumento de que a GLO poderia afetar organizações criminosas ao impedir o tráfico de drogas ou de armas tampouco faz sentido, pois ignora o modo como operam esses grupos e a melhor maneira de combatê-los. Normalmente, uma apreensão de drogas em um porto brasileiro começa com informações fornecidas pelas polícias dos países de destino da carga. Como regra geral, o Brasil é usado como passagem de drogas produzidas em países como Colômbia, Bolívia e Peru. Assim, de posse de dados compartilhados por americanos e europeus, a Receita Federal inicia uma investigação e acompanha o percurso da mercadoria em território nacional. Enquanto isso, os auditores conferem quais são as empresas que estão na negociação e as guias de importação e exportação. Olham, por exemplo, se a carga discriminada está de acordo com o tipo da empresa e seus responsáveis. Quando finalmente ocorre a apreensão, os auditores sabem com bastante precisão onde pode estar a droga. A Polícia Federal, então, é acionada. “Com base na inteligência, os auditores escolhem um percentual muito baixo de contêineres para abrir. Dessa forma, evita-se atrapalhar o dinamismo do comércio exterior”, diz Kléber Cabral, vice-presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal, Unafisco.

 

Marinha do BrasilMarinha do BrasilBlindados em frente ao Museu do Amanhã: pose no cartão-postal
 

A presença das Forças Armadas em nada altera esses processos. Uma ação militar só é válida em áreas de comércio intenso na divisa entre países, como na Tríplice Fronteira. Ao ver um tanque e homens armados na margem brasileira, um contrabandista paraguaio pode desistir de levar um saco de cigarros em uma balsa para Foz do Iguaçu. Mas essa presença ostensiva não afeta o tráfico pesado, feito por grandes organizações. Nesse caso, o mais provável é que, durante o período em que a GLO estiver em vigor, até maio de 2024, elas optem por outros aeroportos, principalmente os do Nordeste, para evitar contratempos. “É como anunciar que haverá uma blitz em uma avenida para detectar pessoas que dirigem alcoolizadas. Todos que beberam vão procurar outro caminho”, diz Kléber Cabral, da Unafisco. E um detalhe que não pode faltar: é justamente no Nordeste onde estão as cidades mais violentas do Brasil.

Ao tentar justificar a utilidade da GLO e o papel das Forças Armadas, o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, enrolou-se todo: “A Marinha já não está no mar? A Aeronáutica já não está nos aeroportos? O que vai haver a mais? Evidentemente que em regime normal, as operações são limitadas. Um exemplo: se a Marinha detecta dentro de um contêiner uma droga, um pacote, uma caixa, ela não pode tomar providência nenhuma. Ali, o que a Marinha encontrar, poderá fazer tudo. No aeroporto, a mesma coisa. Um cão farejador detectava que havia um problema qualquer dentro de uma bagagem, a Aeronáutica não poderia abrir a bagagem. Com a GLO, poderemos ajudar a Polícia Federal, porque essa é uma obrigação dela”. Ao ser questionado se as Forças Armadas poderiam abrir malas ou contêineres, o vice-almirante Renato Rangel Ferreira, comandante da GLO, afirmou a Crusoé: “Vamos abrir o contêiner, mas para isso a Receita Federal ou a Polícia Federal estarão do nosso lado. Queremos que seja assim. Não queremos roubar o protagonismo de ninguém, apenas apoiar entes que sofrem com limitação de pessoas ou de recursos materiais.”

 

Marinha do BrasilJipe é içado ao convés de um navio: sem explicação
 

Ainda que se admita que a GLO tenha algum resultado em conter o tráfico de drogas e de armas em portos e aeroportos, como pretende o governo federal, isso não teria implicações na criminalidade das metrópoles. Os delitos que hoje deixam a população desamparada e assustada estão ligados principalmente às disputas de território entre grupos armados. Essas organizações têm dinheiro de sobra para pagar mais caro por drogas e armas no período limitado de duração da GLO. Não faltam fornecedores nesses mercados. “Se entrarem menos fuzis pelo aeroporto do Galeão ou menos pistolas pelo porto de Santos, não haverá um impacto no Complexo da Maré. O mais provável é que os criminosos encontrem outras maneiras de obter suas armas”, diz o coronel Araújo Gomes, que também é secretário municipal de segurança de Florianópolis.

Bahia e Rio de Janeiro são os estados em pior situação justamente por causa dessas guerras entre bandos. O antropólogo e ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar fluminense Paulo Storani diz que o estado do Rio de Janeiro vive um processo de “mexicanização” do crime. “São os grupos e facções criminosas que dominam o território e determinam o que acontece ou deixa de acontecer, à revelia do Estado“, diz Storani. Estudos apontam que as milícias dominam metade do território do estado e faturam com múltiplas fontes de renda, como construção em áreas de preservação ambiental, extorsão de comerciantes e venda de serviços como luz e televisão a cabo. Para elas, o tráfico de drogas não é a principal atividade.

Para conter a escalada atual de violência, o Estado precisaria retomar essas áreas com ações de longo prazo, localizando as figuras públicas que colaboram com o esquema criminoso, de policiais corruptos a políticos alinhados ao crime. “Tem que assumir a responsabilidade de investigar e cortar na própria carne“, diz Bruno Paes Manso, jornalista que pesquisa violência e que acaba de lançar o livro A fé e o fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI (assista à entrevista abaixo).

 

 

A despeito da baixa efetividade, o teatro do improviso pode render ao menos uma boa oportunidade para os militares. “A GLO atende uma certa demanda e provoca uma distensão no momento em que alguns líderes militares estão sendo investigados pelos Atos de 8 de Janeiro”, diz Ricardo Moura, do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará. Após ganhar protagonismo político no governo de Jair Bolsonaro, a caserna amargou um ano ruim, com desavenças com o governo Lula, esquemas de venda de joias e conspirações de seus comandados em um possível golpe de Estado. A GLO, portanto, pode ser uma maneira de limpar a imagem, sem acarretar novos percalços. “Para os militares, essa GLO representa uma boa oportunidade de marketing, sem os mesmos riscos das GLOs habituais, que ocorriam em comunidades do Rio“, diz Christoph Harig, professor do Colégio Real de Defesa da Dinamarca. “Nos portos e aeroportos, a probabilidade de encontros violentos com grupos armados é bem menor. Por isso, o risco de danos colaterais, que causam desgaste na imagem pública, se reduz.”

Até o fechamento desta edição de Crusoé, a GLO não havia feito nenhuma apreensão de drogas ou de armas. Mas isso é algo que deve ocorrer nos próximos meses, à medida que os militares aproveitarem melhor os trabalhos da Receita e da Polícia Federal. Na cabeça dos comandantes das Forças Armadas, o principal impacto do trabalho deles será visual. “O objetivo é ser visto. A gente quer que a população e as forças adversas, como os criminosos, nos vejam. Assim comunicamos segurança. A população vai se acostumar, e esperamos que o nível de violência baixe”, disse o vice-almirante Renato Rangel Ferreira, comandante da GLO. Hora de pegar a pipoca e desligar o telefone celular, porque o show já começou.

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  1. Excelente reportagem! Enquanto não atacarem AS CONTAS BANCÁRIAS que essas organizações mantém em nomes de laranjas, eles continuarão mandando no Brasil

  2. Gostaria de acreditar nessa nova iniciativa. Mas, dá para perceber muita fragilidade se comparada com os grandes facções.

  3. Enquanto isso o Hipodino está preocupado em criar mimimi com o Mossad. A incompetência e falta de vontade política para agir na esfera da Segurança Pública é notória no desgoverno do Descondenado.

  4. Está tranquilo. Para pessoas físicas a fiscalização é rígida, um produto importado fica mais de 25 dias alfândega.

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