Lula criou o 38º ministério; outros virão

Na entrada do nono mês do primeiro ano de mandato da democracia restaurada e renovada, pelo menos na aparência, a cidadania brasileira desperta do sonho acalentado de sepultar a aventura golpista do mau militar (apud Ernesto Geisel) Jair Bolsonaro. No entanto, a população volta aos poucos à normalidade do trabalho pós-home office ainda mergulhada em pleno e fétido pesadelo da inequívoca e esperada agonia da aventura autoritária do bolsonarismo.

A incompetência inesperada de uma tal Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da tentativa de golpe de 8 de janeiro mantém a velha tradição criminal brasileira de pena para pés-rapados e impunidade e imunidade para bem calçados, em especial os de meias de seda e coturnos. O episódio judicial mais típico desse coronelismo mantido em formol formal foi a condenação do hacker de Araraquara, Walter Delgatti Neto, a 20 anos de prisão sem uma punição sequer para aproveitadores de seu crime óbvio de quebra de sigilos telefônico e telemático de autoridades públicas do Ministério Público Federal e da magistratura, vitimando vítimas e beneficiando beneficiários — um dos quais com liberação para a disputa eleitoral da Presidência, além de outros menos votados. E ainda de seu intermediário na consecução do delito, o hacker grã-fino nova-iorquino Glenn Greenwald. Quem quiser aprofundar-se no tema pode consultar esta coluna na semana passada (“O hacker expiatório da vez”).

O telespectador contumaz dos soi-disant noticiários diários terá de despertar do sonho dourado da volta da democracia, nos quais os protagonistas não são os que tentaram a intervenção militarista, mas os mandantes e executores de um golpe malogrado. Perderam os playboys, mas são tratados como se houvessem apenas tentado preservar seu mágico de circo de um rotundo fracasso político. Esse truque de tratar o insucesso com a atenuante da tentativa malsucedida prolonga indefinidamente o inquérito bem feito pela Polícia Federal e a transformação do plenário da CPMI num picadeiro de um espetáculo grotesco e sem a mínima graça. Todos, e principalmente o pretenso “mito”  —que significa não um mentiroso, mas a própria mentira—, merecem a exposição, mas não a exaustão do relato de seus malfeitos como se fossem heróis vencidos, e sim pelo que são, um bando grotesco de salteadores da República. Devem passar para a história não como as tropas derrotadas em Waterloo, mas sim como malfeitores pilhados sem ter usufruído dos frutos de sua derrota. O exemplo histórico e bisonho desse grupo é o general Augusto Heleno, que chefiou o assalto ao general Fernando Bethlem no aeroporto de Brasília, o que provocou a demissão do então ministro do Exército, Sílvio Frota, tendo assim possibilitado a manutenção da gestão, o impedimento de depor o presidente Geisel e o anúncio por este do sucessor, João Figueiredo. O bis de seu fracasso resume muito bem a correção do argumento do jurista Joaquim Falcão ao definir com exatidão o 8 de janeiro como “golpe malogrado”.

A substituição dele pelo colega de patente, Gonçalves Dias, pelo presidente eleito, Lula da Silva, poderia passar em brancas nuvens se os empossados no primeiro dia do ano e da gestão não tivessem se esforçado tanto para manter em sigilo as imagens de seu descaso na invasão pelos golpistas de araque da sede do Poder Executivo. E para manter ignorada sua permissão tácita ao vandalismo dos celerados à solta.

Este, contudo, não foi o único passo em falso do arremedo de democracia triunfante que substituiu o pesadelo da volta do cipó de aroeira a que se referiu Geraldo Vandré numa celebrada canção de protesto. Legitimamente eleito, diplomado e empossado como o anterior — o capitão-terrorista do golpismo desbaratado, Jair Bolsonaro —, o tripresidente Lula não governa para a quase metade do país que não o sufragou nas urnas eletrônicas, ao contrário do que prometeu. E, ao contrário do que se esperava dele, nem sequer mudou ou mudará hábitos que se cristalizaram nas gestões anteriores: o uso da vintena para povoar a Esplanada dos Ministérios dos sonhos do Centrão da direita estúpida, os pronunciamentos do trono sem perguntas livres, mesmo sendo a imprensa tão compreensiva para seus arroubos etc. No caso do 38º ministério, criado não para pequenas e médias empresas, mas para a, esta sim robusta, nobreza da casta política, burocrática e militar reinante, ainda há a expectativa de que, para satisfazer a volúpia do chefão da casta, Arthur Lira, venha a ultrapassar o limite antes alcançado pela desastrada Dilma Rousseff — certamente a mais cabulosa invenção do dedo indicador de sua mão direita.

Este texto não seria completo se seu autor intransigente não lembrasse a expectativa reinante de que o terceiro reinado de Lula fosse uma repetição melhorada de seu primeiro. Mas a adesão à invasão da Ucrânia por Putin, o flerte com ditaduras fascistas como as da China e do Oriente Médio, a nomeação do ultraconservador Cristiano Zanin para o Supremo Tribunal Federal e o abandono sem explicação razoável do hábito de nomear para a Procuradoria-Geral da República alguém da lista tríplice da categoria lembrariam mais um bis de Dilma Rousseff, se não fora a exceção do último exemplo. Isso, pelo visto e vivido, para o pior dos pecados da plebe, ele vai conseguir. Tudo sob as bênçãos de Fernando Henrique Cardoso, que inventou o instituto da Presidência eterna, do qual foi o primeiro a usufruir.

José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor