O hacker expiatório da vez

Walter Delgatti Neto, 33 anos, paulista de Araraquara, destacou-se no noticiário político por serviços prestados ao soit disant jornal on line The Intercept, à época do nova-iorquino Glenn Greenwald, de 56 anos. O hacker de Araraquara ou Vermelho, como passou a ser conhecido então, é notório e confesso profissional da invasão de sigilo telemático, em teoria proibida por lei. Mas que tem recebido o aval de políticos e magistrados em investigações policiais e judiciais. O delito possibilitou a revelação pública de mensagens por internet do juiz Sérgio Moro e de procuradores da Operação Lava Jato, chefiados por Deltan Dallagnol. Sem essa quebra criminosa de sigilo telefônico a tarefa levada a cabo pelo procurador-geral, Augusto Aras, de desmoralizar e explodir a Lava Jato não teria êxito.

Mercê da parceria de Greenwal com os hackers Edward Snowden e Julian Assange veio a público a existência de programas secretos de vigilância global dos Estados Unidos, efetuados pela Agência de Segurança Nacional (NSA) daquele país. No Intercept, fundado por ele em parceria com Laura Poitras e Jeremy Scahill, mas que posteriormente abandonaria, voltaria ao uso de quebras criminosas de sigilo encomendadas ao tal Vermelho. E esse agora está enredado em denúncias de crimes de que são acusados a deputada federal Carla Zambelli e, cada vez mais, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Ou seja: a tentativa de usar seu talento de invasor de computadores para produzir malfeitos como o golpe fracassado da extrema direita para derrubar o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, o mesmo que Delgatti ajudou a mudar da cadeia em Curitiba para os palanques e palácios do País. E outras estripulias que são objeto de inquérito da Polícia Federal, sob a supervisão do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

Ao confessar que o ex-chefe do Executivo o consultou sobre a possibilidade de invadir os aparelhos telefônicos do relator dos processos na mais alta Corte, o hacker de Araraquara passou a ter mais notoriedade de que à época em que trabalhava para demolir a reputação dos agentes da Justiça Federal no episódio anterior. Seus depoimentos bombásticos causam grande preocupação na cúpula do bolsonarismo, mas ainda não bastaram para levar a Comissão de Ética da Câmara dos Deputados a cassar a deputada que o contratou e é casada com o comandante de uma das polícias federais brasileiras, a dita Guarda Nacional, coronel PM do Ceará Antônio Aginaldo de Oliveira. Como é hábito da república brasileira dos coronéis, mandantes são mantidos à margem de sentenças condenatórias, reservadas apenas a executores.

O juiz Ricardo Augusto Soares Leite, da 10ª Vara da Justiça Federal de Brasília, o considerou culpado pelos crimes de invasão de dispositivo informático, organização criminosa, lavagem de dinheiro e interceptação de comunicações. O leitor há de convir que uma pena de 20 anos, mais multa, não é leve, mas injusta não é. Só que nada tem a ver com o charivari em que o Vermelho se meteu com os golpistas do “mito” das fake news e seus acólitos. E, sim, pasmem, com o chamado evento de mídia conhecido pela interessante alcunha de “Vaza Jato”, referência jocosa à Lava Jato, que levou o atual chefe do Executivo à cela da sede da PF em Curitiba. Delgatti foi julgado no âmbito da operação Spoofing, que investigou o vazamento das mensagens de Telegram trocadas entre Moro, Dallagnol e outros carrascos do processo aberto para condenar culpados pela cobrança de propinas da Petrobrás durante o governo do tripresidente Lula.

A habilidade de invadir programas de computador do criminoso Delgatti não o isenta de culpa, mas qualquer cidadão de posse das faculdades mentais há de convir que seu crime não é comparável, por exemplo, à execução de Marielle Franco e Anderson Gomes por Ronnie Lessa e Élcio Queiroz. No entanto, cinco anos depois do atentado de repercussão internacional, só meliantes pés de chinelo, caso da dupla e do ex-bombeiro Maxuel Simões, o Suel, respondem pela barbárie. Como revela com brilho o poeta Ricardo Vieira Lima em seu livro Aríete, ao repetir em 13 estrofes e quatro vezes na última que não há resquício de luz sobre quem financiou o crime. “Quem mandou matar Marielle Franco?” é uma questão que envergonha este país por deixar claro que quem comanda crimes dessa gravidade continua distante até de eventuais suspeitas.

Nestes tristes trópicos está muito longe de ser incomum a queima de arquivo como método infalível de impedir uma revelação que seja da resposta à interrogação mais comum nesses casos: cui prodest? A quem o crime interessa? O escândalo Marielle teve a investigação do mandante atrapalhada por outro assassínio em plena rua. Como relatou Rayanderson Oliveira, do Estadão, “Edmilson da Silva de Oliveira, conhecido como “Macalé”, era sargento reformado da Polícia Militar (PM) e teria intermediado a contratação do ex-PM Ronnie Lessa para cometer o crime. Suspeito de ter ligação com a contravenção no Rio de Janeiro, o policial foi morto a tiros, aos 54 anos, em 2021, na Zona Oeste da capital fluminense. Se ele foi morto na rua, quem impedirá a queima do valioso arquivo do hacker expiatório da vez, Walter Delgatti Neto, trancafiado numa cela?