Foto: DivulgaçãoBradley Cooper caracterizado como Leonard Bernstein: o nariz falso da discórdia

O narigão do maestro

A celeuma em torno da prótese cênica usada por Bradley Cooper revela como o novo progressismo é artisticamente conservador
24.08.23

Levei minha filha para ver Hamlet no Shakespeare’s Globe em 2018. Poderia ter visto montagens melhores, mas, como bom turista literário, me deixei levar pela mística do teatro onde o bardo encenou algumas de suas melhores criações (bem, não é o mesmo teatro: o Globe foi erguido em 1599, destruído por um incêndio em 1613, reconstruído no ano seguinte, fechado por decreto em 1642 e demolido pouco depois. A atual reconstituição, inaugurada em 1997, ocupa um lugar diferente do original). Então com 11 anos, minha filha tinha um domínio ainda claudicante da língua inglesa e nenhuma experiência com a linguagem shakesperiana. Mas ela conhecia a história do príncipe dinamarquês, de uma adaptação em prosa.

Quando Ofélia, enlouquecida, entrou em cena distribuindo flores para os espectadores junto ao palco, minha filha chorou. Não precisou entender o texto para se emocionar: a atitude ausente e a voz cheia de tristeza da pobre Ofélia tornavam palpável sua dissolução psicológica.

Ofélia era interpretada por um homem.

Ao tempo de Shakespeare, não se permitiam mulheres no teatro. Papéis femininos eram feitos por garotos. A montagem do novo Globe tinha, claro, mulheres em cena – mas, com exceção da atriz que fazia a rainha Gertrudes, todas assumiam papéis masculinos. Hamlet era interpretado por Michelle Terry, diretora artística do Globe (uma crítica viperina publicada pela revista The Spectator afirmou que só Michelle teria a ideia de escalar Michelle como Hamlet).

No papel de Ofélia, o ator indiano-britânico Shubham Saraf usava um vestido verde longo, mas não trazia outros adereços femininos – nenhuma peruca ou maquiagem. Ainda assim, em poucos minutos de ação, já não víamos um rapaz alto e moreno nascido em Calcutá. Víamos a ingênua filha de um cortesão de Elsinor desgraçadamente apaixonada pelo assassino de seu pai. E é por essa menina frágil que minha filha chorou.

Saraf era uma ilha de excelência naquela esquisita montagem. O Hamlet de Michelle Terry me pareceu afetado, artificial. E era impossível reconhecer Laerte, o irmão de Ofélia, na mulher baixinha de voz estridente que o interpretava. O imperativo contemporâneo da diversidade sufocou a tragédia maior de Shakespeare. Que um só ator tenha se saído bem em um papel feminino foi um acidente, e não o resultado de uma escalação criteriosa.

Aplicado às artes cênicas, o princípio da diversidade teria, em tese, o potencial de afrouxar aborrecidas convenções realistas. O intérprete não precisa mais ser fisicamente parecido com o personagem e raça não é mais uma barreira? Ótimo! Temos Shubham Saraf como Ofélia e Denzel Washington como Macbeth. Idealmente, a nova cena diversificada produziria espetáculos como a montagem de Tio Vânia, de Anton Tchékhov, dirigida pelo protagonista do filme Drive My Car: uma peça russa encenada por um elenco multinacional que fala diversas línguas – japonês, chinês, coreano, linguagem de sinais. (Vale notar que talvez nada ali pareceria “diverso” para o espectador ocidental médio, incapaz de distinguir as línguas e etnias no palco.)

No entanto, a diversidade hoje está longe de ser uma força emancipadora na arte. O realismo volta pela porta do dogma: só minorias podem interpretar minorias. Scarlett Johansson desistiu de interpretar um personagem trans por causa da pressão da militância e até dubladores de desenhos animados agora têm de ser do mesmo grupo étnico do personagem dublado.

A mais recente controvérsia sobre o tema diz respeito ao nariz de Leonard Bernstein. Bradley Cooper vive o grande compositor e regente americano em Maestro, que ele mesmo dirige. O primeiro trailer do filme, que só chega aos cinemas em novembro, mostra Cooper com um narigão prostético.

A celeuma não se deu tanto em torno de um ator não-judeu vivendo um músico judeu. O problema foi o nariz prostético que, imitando o famoso personagem nasal de Gogol, parece ter ganhado vida própria (os haters dizem até que ele frequentou comícios neonazistas, mas isso é fake news). Nas redes sociais, o narigão falso vem sendo comparado ao nariz original de Bernstein. Os sommeliers de próteses cênicas garantem que o apêndice artificial é maior do que o natural, o que configuraria um estereótipo antissemita.

Em uma declaração conjunta, os três filhos do maestro vieram em socorro de Cooper. Eles elogiaram o amor do ator e diretor pela música de Bernstein e aprovaram a prótese. “Ocorre que é verdade que nosso pai tinha um grande e belo nariz”, dizem os herdeiros.

Para meu gosto, a prótese é dispensável. Mas não vejo estereotipia nela: o modelo não foi uma caricatura antissemita, mas o próprio Bernstein. Embora a discussão toda seja fátua, será talvez auspicioso que afinal uma polêmica ridícula entre tantas que vicejam na bolha progressista diga respeito ao antissemitismo, que vem crescendo em anos recentes.

O comediante inglês David Baddiel diz que o antissemitismo é um ponto cego na cultura de esquerda atual – e ele mesmo se declara de esquerda. Em Jews Don’t Count (Os Judeus Não Contam), livro lançado em 2022, ele demonstra, com fartos exemplos, que estereótipos judaicos encontram certa tolerância em meios nos quais uma palavra errada sobre outras minorias rende a danação eterna no inferno do Twitter (agora X). Uma parte considerável do livro é dedicada a reivindicar que papéis de judeus em filmes sejam feitos por judeus. Este é, afinal, o padrão que as produções seguem quando há outras minorias em cena. Baddiel diz que esta é uma questão de autenticidade: um ator estranho à cultura ou à etnia que representa estará apenas imitando trejeitos esterotipados. Será uma caricatura.

O mau ator será sempre caricato, mesmo quando vive personagens cuja cultura e experiência lhe sejam familiares. Mas a questão central não diz respeito ao talento. Estamos perdendo a compreensão de que arte é fingimento, é artifício. A autenticidade traz de volta à cena o mais estreito e encarquilhado realismo. Defendida por progressistas, ela é, no fundo, conservadora.

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  1. Imagine a ignorância de alguém que considera impossível um ator interpretar algo que não é, ficando-se por caricatura, ou condenar a utilização de apetrechos para aproximar fisicamente o ator do representado. Esse é um problema daqueles que enxergam um mundo em que "tudo é política" e, assim sendo, o embate tem de ser constante e as subtilezas perdem-se no mar da ignorância

  2. O progressismo é uma merda, estou cansado desses debates irracionais com gente ressentida e fracassada!

  3. Até que enfim alguém falou a mais pura verdade. Que os ditos "progressistas" são, na verdade, reacionários de esquerda. Usam a pauta da diversidade para impor suas ideias autoritárias.

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