Foto: Thaís Magalhães/CBFÁrbitro assistente da CBF durante preparação para as semifinais da Copa do Brasil, no último dia 15

Kafka calça as chuteiras

Se não servir para aumentar a sensação de justiça no futebol, o VAR terá o exato efeito oposto
25.08.23

Desde o surgimento do árbitro de vídeo, todo grito de gol é acompanhado por uma série de perguntas dignas de O processo (Companhia das Letras): será que valeu? A bola bateu na mão? A linha de impedimento foi traçada corretamente? Foi falta no início do lance? O VAR prometia diminuir — e até acabar com — os erros de arbitragem, mas, nos quatro anos depois de sua chegada ao Campeonato Brasileiro, acrescentou uma camada de dúvidas e motivos para irritação. Pior: a depender do juiz, o replay à beira do campo acrescentou uma instância decisória à arbitragem dos jogos de futebol no Brasil.

Antes de tudo, é preciso admitir que o VAR mais ajuda do que atrapalha, mesmo nos gramados brasileiros. Mas sua utilização errada põe em risco o próprio futebol. O árbitro de vídeo não tem o direito de errar, e isso é praticamente impossível em um país onde os juízes não são profissionalizados. O próprio Livro de Regras do futebol dá a dica: “O futebol deve ter Regras que permitam a ele continuar sendo justo, o que é um elemento fundamental deste esporte e uma característica vital de seu ‘espírito’. Os melhores jogos são aqueles em que o árbitro é raramente requisitado, porque os jogadores atuam com respeito mútuo e com respeito pela equipe de arbitragem e as Regras”.

Os operadores do VAR no Brasil aparecem muito mais do que o recomendável e jogam sobre os árbitros uma pressão desnecessária e, por vezes, irresistível. Depois que o possível pênalti aparece no telão para o estádio inteiro, ainda que a jogada se trate de um pequeno triscar da chuteira de um zagueiro na panturrilha de um atacante que desmontou cinematograficamente, é muito difícil que o árbitro de campo resista à tentação de apontar a marca da cal — em especial se for mais novo e inexperiente. Os jogadores brasileiros não ajudam, demandando constantemente interferências do juiz, com simulações e reclamações.

A Regra 5, que trata da conduta dos juízes, prevê que “o árbitro pode ser auxiliado por um árbitro assistente de vídeo (VAR) somente na eventualidade de um ‘erro claro e manifesto’ ou de um ‘incidente grave despercebido’”. Isso vale para situações de gol, pênalti, expulsão e erro na aplicação de cartões amarelo ou vermelho. Todo lance capital é revisado, contudo, e não há nada mais irritante hoje em dia do que a linha de impedimento traçada no Brasil. A checagem de lances muito ajustados simplesmente não é capaz de deixar claro se a posição do atacante é legal ou não. Nesse caso, o erro, que era já insuportável sem VAR, ganha requintes de crueldade tecnológicos — a Premier League, por exemplo, adotou linhas mais grossas, para tentar recuperar o conceito de “mesma linha”.

Curiosamente, a regra do impedimento foi minuciosa e obsessivamente detalhada na última atualização das normas. “Não se considerará que um jogador em posição de impedimento obteve vantagem quando receber a bola de um adversário que tocou deliberadamente* nela, incluindo com um toque de mão deliberado, a menos de que se trate de uma defesa deliberada do adversário”, diz a Regra 11. O asterisco do “deliberadamente” é acompanhado por uma longa explanação sobre o que seria um toque deliberado na bola.

Tudo segue dependendo, contudo, da interpretação do árbitro. E, infelizmente, lances parecidos estão sendo interpretados de forma diferente por juízes diferentes. A bola na mão de um defensor do Grêmio dentro da área no segundo jogo da semifinal da Copa do Brasil contra o Flamengo foi pênalti, enquanto a bola na mão de um defensor do Flamengo dentro da área em jogo do Brasileiro contra o Grêmio não foi. Antigamente, os apitadores tinham um milésimo de segundo para definir a marcação; hoje, podem julgar o lance de diversos ângulos. O mínimo que se espera é coerência e uniformidade nas decisões.

Enquanto isso não ocorrer, o torcedor só poderá lamentar. “Não há dúvida de que por trás de todas as manifestações deste tribunal, no meu caso, por trás da detenção e do inquérito de hoje, se encontra uma grande organização”, reclama Josef K. no dia de sua detenção. E poderia ser um torcedor do Palmeiras a descrever a “organização que mobiliza não só guardas corrompíveis, inspetores e juízes de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso, de qualquer modo, sustenta uma magistratura de grau elevado e superior, com seu séquito inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até de carrascos, não recuo diante dessa palavra”.

“E que sentido tem essa grande organização, meus senhores?”, questiona a personagem de Kafka, para responder: “Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos e na maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. Diante dessa falta de sentido do conjunto, como evitar a pior das corrupções entre os funcionários? É impossível, nem o supremo magistrado teria êxito. É por isso que guardas tentam roubar a roupa do corpo dos detidos, é por isso que inspetores invadem casas alheias, é por isso que inocentes devem ser aviltados, ao invés de inquiridos diante de assembleias inteiras”.

Se o VAR não servir para aumentar a sensação de justiça no futebol, como prevê o espírito do jogo, ele terá o exato efeito oposto.

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  1. Sugestão de Pauta: assistir futebol é insuportável. Virou parte da profissão a simulação de faltas escancaradas. Antes eram os goleiros, mas agora qualquer um cai no chão, dá tapas no gramado e levanta a mão em pedido de misericórdia. Nada. Absolutamente nada. Simulações que param jogadas perigosas. Para isso o VAR tem que chamar o juiz para aplicação de cartão. A demora para bater faltas e o excesso de reclamações tornou o futebol enfadonho, cansativo, chato.

  2. Atualmente acho mais importante buscar soluções para acabar com as brigas de torcida do que um VAR dentro do campo.

  3. O var é ótimo. Os juízes é que são péssimos. Sem var a arbitragem voltará a ser o desastre que sempre foi

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