Os fios desencapados do Amazonas
Ao chegar nesta sexta-feira (4) a Parintins, a cidade às margens do rio Amazonas famosa pelas disputas de boi-bumbá, Lula e seu ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, vão a anunciar a construção do linhão de Tucuruí, uma linha de transmissão de energia que foi prometida por Jair Bolsonaro em 2021 e que finalmente ligará Roraima ao Sistema Interligado Nacional (SIN), a rede que conecta tomadas em todo o país.
Silveira e Lula também estarão na área de um dos maiores fios desencapados do setor elétrico: desde que foi privatizada pela Eletrobras em 2019, a Amazonas Energia está nos holofotes — mas não pelas razões que se gostaria. Com reclamações constantes entre a população e dificuldade de diálogo com a classe política local, a distribuidora mal consegue se manter acima dos níveis mínimos de qualidade exigidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Junto com o caso da Light, a distribuidora do Rio que atualmente está em recuperação judicial, a concessão no Amazonas é uma das que mais corre riscos de caducidade, ou seja, de ser rompida unilateralmente pelo governo.
Operando em um local de cidades isoladas e floresta onipresente, não há grandes linhas de transmissão ou hidrelétricas mais potentes que a malfadada Balbina, ao norte de Manaus. Por lá, são comuns os geradores a diesel e o combustível que chega por barcas que podem levar semanas para alcançar os extremos de um estado que tem o tamanho das regiões Sul e Sudeste somadas.
OPERAÇÃO NO VERMELHO
O grupo Oliveira, que assumiu a concessão da Eletrobras em 2019, alega que comprou o ativo com uma dívida próxima a R$ 2,5 bilhões. Após revisões contábeis e um aumento de investimentos, a empresa possui hoje cerca R$ 8 bilhões em passivo, mais que o triplo do original. Sua péssima saúde financeira acaba por se refletir no dia a dia.
Os dados da Aneel mostram que a concessionária atende apenas 1,1% das unidades consumidoras do país, consumindo 1,4% da energia utilizada no país. Dados apresentados pela agência reguladora à Câmara dos Deputados, em junho, mostraram que as reclamações até vêm em queda desde 2022 e, em algumas questões, são até menores que a média nacional. Desde meados de 2021, a empresa consegue se manter abaixo do índice de 5% de serviços realizados fora do prazo (em 2019 beirou os 30%).
No entanto, a população não está nada satisfeita: em uma escala de 0 a 100, a nota dada pelos consumidores à Amazonas Energia subiu dois pontos e chegou a 46,7 pontos — abaixo da nota mínima esperada pela Aneel, de 60 pontos, e com perspectiva de piora na confiança. No Procon Amazonense, há 31.292 reclamações protocoladas nos últimos quatro anos e, por mais que a empresa tenha participado de 5.649 audiências de conciliação, já recebeu 14,7 milhões em multas — valor que pode chegar a 41,1 milhões.
Os parlamentares acompanham a situação com certa apreensão. “A população hoje se sente injustiçada e alguns pontos precisam ser debelados”, argumentou o deputado Fausto Santos Jr., do União Brasil do Amazonas. O deputado estadual Mário César Filho (União) também apresenta críticas. “Temos a energia mais cara do Brasil e grande parte da população vive abaixo da linha de pobreza.”
“ENERGIA NÃO SE PAGA”
O caso da Amazonas Energia tem mais uma semelhança em relação à distribuidora fluminense: as chamadas “perdas não-técnicas”, motivadas principalmente pelo furto de energia elétrica. Enquanto a Light tem a medalha de bronze na Aneel, com o índice de perda real perto de 54%, a Amazonas Energia tem a maior perda entre todas as distribuidoras do país, com 122% de perdas em relação à baixa tensão, usada por moradores e pequenos comércios. Isso significa que há mais energia consumida de maneira clandestina do que o a ofertada de maneira regular pela empresa para os seus clientes.
Enquanto nem a Light nem o estado do Rio conseguem entrar em certas áreas do estado, controladas pelo tráfico e pela milícia, a dificuldade é outra na Amazonas Energia. “No estado do Amazonas não há uma questão ligada à violência, o problema é sociocultural”, explica um integrante do Conselho da empresa.
Ele continua: “Nas classes abastadas é onde se encontra a maior inadimplência ou de furto de energia, em grandes condomínios. O entendimento da sociedade amazonense é que energia não se paga, como o ar que se respira. É, inclusive, uma bandeira de vários políticos.”
O problema das perdas não-técnicas representa um risco existencial para as empresas. “Sem dúvida é um dos grandes riscos”, disse Marcos Madureira, presidente da Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee), que representa 99% do setor no país. “Como há metas de perda que estão cada vez menores, a parcela que o acionista banca é cada vez maior.”
Não à toa, durante o debate público na Câmara dos Deputados sobre a concessão, o ponto principal de reclamação dos parlamentares amazonenses foi a instalação de um novo modelo de relógio medidor, instalado no alto dos postes. “Se eu puder dar um conselho à Amazonas Energia é: desista dessa ideia”, disse o deputado Mário César.
Tanto a Amazonas Energia quanto a Oliveira Energia, a controladora da concessão, não foram encontradas para comentar a questão.
MODELO DESIGUAL
Desde que a Escelsa, do Espírito Santo, foi privatizada em junho de 1995, o país viu que o modelo é capaz de gerar resultados positivos. Mesmo as distribuidoras do Pará, Acre e Rondônia — desmembradas da Eletrobras junto com a Amazônia Energia — têm concessões mais estáveis que sua irmã mais problemática. O que acontece ali, então?
“Hoje se tem uma mesma régua para ser aplicada para todas as concessões do Brasil. E não se pode comparar a Amazonas energia com a CPFL Paulista”, argumenta o conselheiro da empresa ouvido por Crusoé, lembrando da distribuidora paulista que atende 7,2 milhões de clientes, em uma fração menor de área e mais bem servida de infraestrutura. ”É como se a Suíça e um país africano estivessem sob as mesmas regras.”
O entendimento é compartilhado pelo representante das distribuidoras — que atuam recebendo a energia das torres de transmissão e encaminhando-a para as tomadas brasileiras. “O fato de se ter um modelo que ainda coloca sobre a distribuidora o pagamento e repasse de recursos de geração de energia elétrica traz um desequilíbrio na concessão”, ponderou Marcos Madureira, da Abradee.
À reportagem, o Ministério de Minas e Energia indicou que tem um grupo de trabalho junto com a Aneel para acompanhar a questão e que, no momento, não considera oficialmente um redesenho da concessão. “Todas essas questões relacionadas às concessões do estado do Amazonas deverão aparecer a partir das conversas com os diversos interlocutores no âmbito do recém-criado grupo de trabalho”, pontuou a pasta.
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Que vergonha!!! Quem deveria dar exemplo são os mal educados poderosos da região
Que esbórnia!
Será que vão superar as questões ambientais e indígenas pra finalmente ligar Roraima ao SIN? É muita gente trabalhando contra
A perda de 122 % em relação à baixa tensão deveria ser melhor explicada. A cultura do amazonense de achar que a energia não se paga é semelhante ao dos cariocas que vivem em áreas controladas por bandidos. Estes nada fariam se o cidadão pagasse a conta de luz.