Ubirajara Machado/MDSBolsa Família: em 13 estados há mais pessoas ligadas ao programa do que com emprego formal

Os riscos de uma lumpendemocracia

Explosão do número de beneficiários do Bolsa Família em vários estados põe mais brasileiros em situação de dependência política e pode afetar eleições futuras
06.07.23

Certa vez, uma pesquisa realizada com eleitores de uma cidade periférica de Brasília com índices altos de pobreza mostrou que o principal item que definiria o voto em uma determinada eleição seria a “educação”. O responsável pela análise ficou impressionado porque não era comum essa relação, pois pessoas carentes tendem a apontar necessidades mais urgentes como prioridades políticas, tais como emprego e saúde, por exemplo, enquanto a educação fica em uma prateleira mais acima.

Curioso com o resultado, o analista então pediu que se realizasse uma pesquisa complementar, um grupo focal, no qual eleitores típicos foram convidados para uma conversa mediada por um especialista que tinha a missão de buscar as crenças dominantes naquela sociedade. Assim, o mistério pôde ser resolvido. Na cidade havia duas escolas, uma com merenda e outra sem lanche e os candidatos a vereador estavam prometendo vagas para as mães no estabelecimento onde suas crianças poderiam ser alimentadas.

O exemplo, infelizmente real, mostra a dinâmica do voto em populações com carência material elementar. Quando o básico não está universalizado, ele é distribuído assimetricamente para gerar dependência política. Vai ter gente que vai acessar os serviços públicos e outros que não vão, e são os políticos que decidem de que lado a sorte estará.

Essa questão está longe de ser uma novidade para qualquer um no Brasil, mas serve de atalho para uma discussão de primeira necessidade que é a relação entre dependência econômica e qualidade do voto. Antes, no entanto, é preciso fazer uma ressalva. Pessoas pobres e ricas são igualmente racionais para decidir seu voto, isto é, são totalmente capazes de agir conectando meios e fins. O que faz a diferença é o incentivo que molda o comportamento na hora de enfrentar a urna: quem estiver em estado de necessidade tende a buscar resolvê-lo na maneira que puder e ponto. Qualquer coisa diferente disso é fantasia.

O número de beneficiários do Bolsa Família, nesse sentido, é uma medida objetiva para avaliar o contexto de incentivos que influencia como vota boa parte dos eleitores brasileiros. Pode-se imaginar que pessoas nessas condições têm interesse focado no valor do auxílio que receberão, no seu poder de compra (principalmente de alimentos), são mais expostas à violência, à situação de desorganização familiar e suas expectativas estão fortemente ligadas a mais políticas distributivas, como moradia, tarifas sociais de água e de luz e outros programas fornecidos por governadores e prefeitos.

A relação do eleitor com o Estado se dá principalmente via Caixa Econômica, onde ele saca o benefício, com cadastros sociais, unidades básicas de saúde, centros locais de assistência social e escolas públicas. Embora não haja nada que possa dizer que essa população seja mais ou menos tolerante com a corrupção em comparação com outros estratos de renda da sociedade, o fato é que, como está ilustrado no exemplo citado acima, é muito provável que exista algum nível de intermediação de agentes políticos para acessar os serviços e a renda pública.

Como foi divulgado recentemente, em 13 estados da federação há mais beneficiários do programa do que trabalhadores com carteira assinada. No caso de Maranhão e Piauí, os beneficiários são duas vezes mais numerosos do que os empregados pela CLT. É preciso ponderar que um salto aconteceu em razão da pandemia da Covid-19 mas, uma vez normalizada a economia, parece haver uma dinâmica própria de aumento de atendidos. O aumento do benefício para 600 reais aparentemente fez com que pessoas deixassem de procurar emprego com receio de perder o benefício, correspondendo a 1/3 da população que deixou a força de trabalho no último ano.

Se, no nível local, as relações de dependência determinam o ritmo da política sem muito estranhamento, o aumento gigantesco de beneficiários do Bolsa Família pode ter elevado esse tipo de relação a um patamar inédito, a ponto de definir uma disputa presidencial. Não terá sido por acaso que a disputa entre Lula e Jair Bolsonaro tenha terminado numa disputa sobre quem pagaria 600 reais, vencida por quem prometeu fazer chover cerveja e picanha.

O Brasil ruma, assim, para uma espécie de lumpendemocracia, pedindo licença para usar o termo criado por Karl Marx para definir pessoas que não pertenciam nem sequer ao proletariado de tão pobres e marginais. Por não estarem inseridas no sistema produtivo, não tinham condições de desenvolver consciência de classe e serviriam no máximo como exército auxiliar dos trabalhadores ou para a burguesia em uma eventual revolução.

É necessário entender a consequência de ter eleições presidenciais definidas por um contingente de eleitores dependentes de rendas do Estado e os riscos inerentes para o funcionamento da democracia. Além da deterioração do debate, pois qualquer candidato que se pretenda viável irá direcionar suas baterias para esse público, isso pode significar uma perpetuação do PT no poder, hoje a força política mais identificada com políticas de natureza distributiva. Como reação, que pode parecer intransponível, outros atores podem alimentar discursos de fragmentação social, como fez o governador Romeu Zema recentemente, separando estados produtores – e que podem contribuir para o desenvolvimento – de outros que não são.

Para a democracia, resolver o problema das pessoas dependentes de renda do Estado é objetivamente mais importante do que regular a internet, por exemplo. Ter informação de qualidade não significa nada se não houver, do outro lado, pessoas com a possibilidade de se comportarem como público, com uma percepção crítica dos fatos, que possam viver sem se preocupar em agradar a intermediários políticos para que o filho esteja em uma escola com merenda.

 

Leonardo Barreto é cientista político

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  1. Esse exército de dependentes do estado não é por acaso, é por desígnio. Desta forma não há qualquer vontade em mudar essa realidade

  2. De esmola a uma pessoa e ela se envergonha ou se vicia. Há que cobrar algo em troa, para não criar uma legião de bichinhos de estimação fiéis a seus provedores (que proveem com o dinheiro dos outros).

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