Reprodução/VolkswagenElis Regina (1945-82), revivida por inteligência artificial no comercial da Volkswagen: nossos ídolos ainda são os mesmos

Ainda somos os mesmos e vivemos como o Belchior

07.07.23

É difícil definir o que é mais equivocado nessa história do comercial da nova Kombi elétrica. Se você não estava em Marte e totalmente desconectado das redes sociais na última semana, sabe do que se trata: é aquele em que uma Elis Regina ressuscitada por inteligência artificial e sua filha, Maria Rita, cantam juntas Como Nossos Pais dirigindo, respectivamente, uma Kombi velha e uma moderna. O autor da música, Belchior, aparece como ilustração de uma camiseta. Claro, hipster usando camiseta do Belchior é outro sinal inequívoco de modernidade.

O equívoco começa na propaganda em si. A Elis produzida por IA é meio robótica, com movimentos não naturais: como disse uma amiga, talvez esteja muito contrariada de ter sido colocada para dirigir uma Kombi uns 40 anos depois de morta. E a peça dá a impressão de que os publicitários que a criaram, como bons habitantes das redes, só leram o título da letra de Como Nossos Pais. A canção de Belchior não é um elogio fofinho ao “encontro de gerações”: muito pelo contrário, para o narrador não pode haver nada mais deprimente que ter feito tudo, tudo, tudo que ele e os amigos fizeram e ainda ser igualzinho aos pais.

Mas talvez as reações ao comercial tenham sido ainda piores. Primeiro vieram os emocionados: “Aaai, meu Deus, que lindo, que tocante, que comovente, chorei largado” (muitos moradores das redes sociais, em especial do Twitter, são uns seres tão à flor da pele que se esvaem em lágrimas até com propaganda de margarina). Nesse time dos comovidos estava ninguém menos que Janja, primeira-dama e janjadora-geral da República: “Sete e pouco da manhã aqui na Argentina e eu me acabando de chorar”. Certamente, essa Janja emotiva está sintonizada com Lula e quer dar uma força à nascente indústria automobilística brasileira, aquela que fez 70 anos sem nunca largar a mamadeira dos subsídios.

Não demorou para que uma onda oposta se erguesse: vocês NÃO PODEM se emocionar com essa propaganda porque é capitalismo, é neoliberalismo, foi Hitler que fundou a Volkswagen, Elis cantava para os sindicatos no 1º de Maio e isso é um insulto à memória dela (também cantou, anos antes, o Hino Nacional na Olimpíada do Exército, o que fez o patrulheiro Henfil colocá-la no cemitério dos mortos-vivos do seu personagem Caboco Mamadô; mas depois se redimiu). O mais engraçado é ver um pessoal mais empenhado em ser filho e herdeiro de Elis Regina do que a própria Maria Rita: “Como você ousa ganhar dinheiro com a imagem da sua mãe? Elis é nossa!”. Vai lá e pede um teste de DNA então, amigo.

Somando todos os equívocos, quem mais ganhou com essa história foram os publicitários — que, mesmo sem terem prestado atenção à letra de Como Nossos Pais, certamente estão levando uma boa grana com o engajamento que a “polêmica” provocou — e, apesar da Elis-robô, a inteligência artificial. São mesmo fascinantes as possibilidades que a IA nos oferece: no próprio Twitter, já sugeriram ressuscitar Dorival Caymmi para um vídeo com a filha Nana e a neta Alice (Alice e Dorival dirigindo a Kombi, Nana de verde-amarelo agarrada ao para-brisa dianteiro). Ou o suposto filho de Gugu Liberato e o Gugu de IA dentro da banheira, cantando a música do pintinho amarelinho. Sim, o futuro é glorioso.

Prevejo mudanças de testamento que incluirão uma cláusula proibindo os herdeiros de fazer o morto dirigir uma Kombi, ou exercer atividades ainda menos edificantes, no pós-morte. Não tenho herdeiros, mas se me transformarem em Goiaba-robô juro que volto do inferno para assombrar os responsáveis. Levem essa IA para lá e me deixem quieto no meu canto, com minha burrice natural.

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A GOIABICE DA SEMANA

Luan (foto), jogador do Corinthians que é provavelmente o encostado mais caro do futebol brasileiro (R$ 800 mil por mês para não jogar), estava curtindo a vida adoidado com nove acompanhantes num motel de São Paulo quando foi rudemente interrompido por esse exemplo de civilidade e democracia que são os torcedores da Gaviões da Fiel: arrancado da suíte em que estava, apanhou muito democraticamente. Dias depois, o UOL publicou uma reportagem com o título “Corinthians agenda reunião com Luan confiante em rescisão amigável”. Não sei vocês, mas no meu tempo “amigável” não significava “forçado a sair do clube depois de levar surra da torcida”; essa juventude de hoje está muito mudada.

Rodrigo Coca/Agência Corinthians

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