Palácio do PlanaltoBolsonaro e Putin: misérias

Grandezas e misérias da diplomacia presidencial

No calor da hora, em meio a conversações apressadas, pouco ou mal-informados pelos assessores ou respondendo a preferências pessoais, o mandatários podem dar o seu acordo a um arranjo que depois se revelará problemático
06.07.23

A diplomacia foi inventada para que os soberanos não tivessem de recorrer à guerra cada vez que surgisse uma desavença qualquer entre duas nações vizinhas. Nem sempre foi exercida por diplomatas profissionais, sendo que a existência e a continuidade de enviados permanentes, acreditados junto a Estados estrangeiros, são fenômenos relativamente recentes na história da humanidade, começando a se desenvolver na idade moderna, mais exatamente a partir das grandes navegações, e tomando uma forma mais elaborado no Congresso de Viena de 1815, ao final das guerras napoleônicas. Antes, e mesmo depois desse famoso congresso – objeto de uma tese de doutorado do mais famoso diplomata contemporâneo, o agora centenário Henry Kissinger –, o mais usual era o envio de enviados extraordinários, ou ministros plenipotenciários, junto às cortes e governos dos países amigos com os quais havia interesse em negociar tratados de comércio e navegação ou para lidar com questões delicadas surgidas nessas relações. Na Europa do Antigo Regime, esse intercâmbio de representantes dos soberanos adquiriu certa amplitude e intensidade, com o que a troca de embaixadores passou a ser mais frequente.

Eram bem mais raros, todavia, os encontros entre os próprios soberanos, não apenas pela dificuldade de comunicações, como pela pompa que um deslocamento real exigia. Nas democracias burguesas do século 19, tais encontros começaram a frutificar, mas apenas por ocasião de visitas bilaterais, visando os mais altos interesses dos Estados. Nem no Congresso de Viena isso ocorreu, pois os assuntos mais relevantes da Europa pós-napoleônica foram tratados entre os chanceler dos Estados mais importantes ou seus designados especiais. As negociações de paz de Paris, em 1919, contaram com a presença do presidente americano Woodrow Wilson, que ali apresentou seus famosos “14 pontos” – onde figurava a criação da primeira organização multilateral voltada para a paz e a segurança, a Liga das Nações –, mas os demais participantes foram representados por seus ministros das relações exteriores ou, no máximo, pelos primeiros-ministros, dado o formato quase geral de regimes parlamentares.

A partir daí, a configuração das relações diplomatas passa a ser objeto de regras bastante minuciosas, até que estas fossem finalmente formalizadas nas duas convenções de Viena do início dos anos 1960, sobre relações diplomáticas e consulares. Mas, os encontros de cúpula permaneciam ainda assim muito raros, sendo mesmo excepcionais, como aliás registrado pelas conferências entre os três dirigentes das nações aliadas na Segunda Guerra Mundial, Roosevelt, Churchill e Stalin (notadamente em Teerã e Ialta; em Potsdam, ao final da guerra europeia, Roosevelt já tinha falecido e Churchill perdeu o cargo de primeiro-ministro). Essas reuniões entre os três grandes permitiram, efetivamente, alguns acordos de extrema importância, mas também abriram espaço para decisões não conformes ao espírito geral e aos objetivos específicos que as tinham motivado (sobretudo, nos países ocupados pelas forças da União soviética).

Este é, precisamente, o paradoxo dos encontros de cúpula entre os decisores últimos dos interesses nacionais: no calor da hora, em meio a conversações apressadas, pouco ou mal-informados pelos assessores, ou respondendo a preferências pessoais, eles podem dar o seu acordo a um arranjo que depois se revelará problemático em mais de um sentido. Visitas bilaterais, por outro lado, também podem ser problemáticas, quando um dos lados resolve apresentar um assunto não suficientemente trabalhado pelas respectivas diplomacias, daí podendo resultar algum compromisso cujas implicações não foram visualizadas no momento. Uma vez a palavra levianamente empenhada, fica difícil voltar atrás do acordo de princípio registrado naquela ocasião. Nos países de tradição presidencialista, esse perigo é ainda maior, pois que o presidente é geralmente chefe de Estado e chefe de governo, sem que o gabinete ministerial tenha autoridade, ou capacidade, de fazer o dirigente recuar de uma conformidade rapidamente aceita num desses tête-à-tête bilaterais.

No caso do Brasil, a participação direta dos presidentes nas relações exteriores variou muito segundo a personalidade dos incumbentes. Getúlio Vargas propriamente inaugurou a mania da “diplomacia presidencial”, falando diretamente com “seus” embaixadores, por cima e na ignorância dos chanceleres oficiais. Depois dele, Juscelino Kubitschek teve certo envolvimento nos temas diplomáticos, notadamente ao propor a Operação Panamericana, a primeira iniciativa multilateral do Brasil em escala hemisférica, da qual resultou a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o empurrão para que Kennedy lançasse a Aliança Para o Progresso, já no contexto da luta contra o comunismo cubano. Jânio Quadros foi um pouco mais ousado, com a sua Política Externa Independente, um não alinhamento informal, continuada sob João Goulart, mas já numa zona de conflito com o grande irmão hemisférico (que aliás estimulou a sua derrubada pelos militares). Os presidentes do regime militar foram em geral pouco ativos em política externa, com a exceção de Ernesto Geisel, um prussiano com pretensões de estadista, que apreciava ditar ele mesmo o que o Itamaraty e seu chanceler deveriam fazer. Foi a primeira diplomacia “ativa e altiva”, mas que deixou vários problemas que foram resolvidos depois.

A redemocratização trouxe um novo impulso, tanto à política externa independente, quanto a uma diplomacia engajada bem mais em realizar a integração regional do que em derrubar presidentes julgados esquerdistas pelos generais da ditadura. José Sarney e Raúl Alfonsin praticaram diplomacia presidencial ao acordarem, em 1988, um tratado de mercado comum entre o Brasil e a Argentina que deveria ficar pronto dez anos depois, da mesma forma como o fizeram Fernando Collor e Carlos Menem, ao decidirem encurtar o período à metade e ampliar a integração aos quatro países do Cone Sul, nascendo aí o Mercosul. Fernando Henrique avançou ainda mais, tanto no conceito de diplomacia presidencial, quanto em sua prática, ao convocar, pela primeira vez, uma reunião de todos os dirigentes da América do Sul para acelerar, do ponto de vista físico, e ampliar a integração na região; ele também visitou, ou recebeu, todos os dirigentes que se situavam entre os grandes parceiros do Brasil, nas áreas econômicas, políticas e de cooperação científica e tecnológica.

Uma característica dos três presidentes foi a intensa cooperação, ou a quase osmose, entre o Itamaraty e o Palácio do Planalto, no sentido em que todos eles se cercaram de assessores da corporação e geralmente acatavam os conselhos técnicos dos diplomatas, antes de se decidirem por alguma iniciativa ou para acatar um simples discurso em diplomatês. Tal não foi o caso nem de Lula, que praticou uma diplomacia presidencial “ativa e altiva”, nem de Jair Bolsonaro, que não tinha diplomacia nenhuma, apenas instintos primitivos que o faziam se aproximar apenas de dirigentes da extrema-direita e se submeter de forma sabuja a um destruidor da política externa do seu país, assim como das próprias regras da diplomacia multilateral, que foi o presidente Donald (“I love you”) Trump.

Lula confessou abertamente, num Dia do Diplomata, que o Itamaraty conduzia as relações entre Estados, mas que seu assessor presidencial, um apparatchik do PT, “conduzia as relações entre os partidos de esquerda da região”, e que por isso mesmo era chamado de “chanceler para a América do Sul”; ele também afastava desdenhosamente, a cada reunião aberta, a “maçaroca de papel” que lhe tinha sido submetida pelo Itamaraty, preferindo falar de improviso sobre quão genial era a diplomacia Sul-Sul que ele protagonizava nos quatro cantos do planeta. Já Bolsonaro não deixou nenhuma saudade no Itamaraty, pois que ele, e seu primeiro chanceler, um adepto tresloucado do antiglobalismo, demoliram, de A a Z, a diplomacia profissional, assim como seus princípios e valores, assentados justamente na via multilateral e nas boas relações com todos os vizinhos regionais, independentemente da cor política. Entre um e outro, Michel Temer operou um quase retorno completo à diplomacia profissional do Itamaraty, mas foi objeto das mesmas acusações que a diplomacia lulopetista fazia contra FHC, ambos tachados de “neoliberais” e alinhados ao “império”.

A diplomacia de Lula 3 não escondeu sua pretensão de retornar à “ativa e altiva” e a uma ênfase acentuada – a redundância cabe neste caso – à tal de diplomacia presidencial, já dizendo que viajaria pelo menos uma vez por mês, talvez na pretensão de retomar a tal de política de externa do Sul Global e de se apresentar como o principal responsável pela “volta do Brasil” ao cenário internacional, depois da terra arrasada deixada por Bolsonaro. Ele só não contava com as importantes mudanças operadas nesse cenário desde os anos 2000, com o acirramento das relações entre o campo ocidental liderado pelos Estados Unidos e as duas grandes autocracias da Eurásia, assim como com o grande desarranjo nessas relações, no seguimento da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, discretamente apoiada pela China, que via o experimento de Putin como uma espécie de teste para uma eventual aventura no estreito de Taiwan, depois da submissão de Hong Kong ao novo Celeste Império.

Um dos problemas da diplomacia presidencial é justamente esse, o entusiasmo do dirigente máximo pelos seus próprios projetos pessoais, sem que eles tenham sido estudados e avaliados pela corporação dos profissionais da diplomacia e por outros assessores especializados da burocracia estatal, de maneira a mapear devidamente o caminho que o chefe de Estado, e de governo, pretende trilhar nas relações exteriores, como forma de evitar surpresas desagradáveis, como essa de ficar falando sozinho sobre um tal de Clube da Paz. Outro tema constrangedor, para diplomatas e responsáveis econômicos, é ver o presidente deblaterar contra o dólar, ao pretender “libertar” o Brasil, o Mercosul, o Brics e quem mais quiser, dessa incômoda “dependência” da moeda americana, propondo sua substituição por uma moeda comum, cuja viabilidade é próxima de zero nos anos de seu mandato. Diplomacia presidencial pode ser útil, em determinadas circunstâncias, mas exercida em excesso pode ter efeitos inesperadas para quem pretende voltar triunfalmente aos cenários globais.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

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