DivulgaçãoCena de 'Dead of the Night' dirigida por Alberto Cavalcanti: clássico desprezado

A ausência do clássico

A cultura brasileira se moldou na fase da exuberância e é como se o clássico nunca tivesse chegado a se estabelecer totalmente por aqui
06.07.23

A cultura brasileira se formou sob o signo do barroco – foi esse o estilo que primeiro se elaborou no país, moldando tudo que viria depois.

O barroco está na retórica de padre Antônio Vieira, nas primeiras igrejas importantes construídas no Brasil, na poesia de Gregório de Matos, na arquitetura de Aleijadinho. Num sentido ampliado, está também na música de Heitor Villa-Lobos, na arquitetura de Oscar Niemeyer e na poesia de Carlos Drummond de Andrade, e por aí vai.

O historiador da arte francês Henri Focillon diz que o barroco não é apenas um período específico da história da arte, mas um estágio de desenvolvimento que se repete ao longo da história. Por exemplo, a arte grega antiga tem seu período arcaico, clássico e barroco. O gótico igualmente teve sua forma mais experimental, arcaica. As formas se estabeleceram numa estrutura clássica. Por fim chegaram à exuberância no gótico flamboyant ou flamejante.

Acontece que a cultura brasileira se moldou na fase da exuberância, do barroco propriamente dito. Isso tem efeitos até hoje. É como se o clássico nunca tivesse chegado a se estabelecer totalmente no Brasil, em diversas áreas, como se estabeleceu em outros países.

O cinema brasileiro é o melhor exemplo. Nós não temos filmes clássicos reconhecidos pela população como tem a França, a Inglaterra, os Estados Unidos. O período em que o cinema brasileiro mais ficou conhecido no exterior é o Cinema Novo, uma fase de exuberância.

Os filmes de Joaquim Pedro de Andrade são barrocos tanto na linguagem quanto na temática: tratam da escultura e arquitetura de Aleijadinho (biografado pelo avô do cineasta), da Inconfidência Mineira (Os Inconfidentes, 1972), ou apenas da história de amor entre um sacerdote e uma jovem (O padre e a moça, 1965).

O cinema de Glauber Rocha é também barroco na exuberância da linguagem. Ele próprio era uma figura barroca.

É como se o cinema brasileiro tivesse pulado a era dos grandes clássicos dos estúdios e tivesse chegado logo à Nova Hollywood, fazendo um paralelo com o cinema americano. Não que o cinema brasileiro não tenha filmes com a relevância de serem chamados de clássicos. É que os filmes clássicos brasileiros não são reconhecidos como tal.

Um dos motivos disso é desprezo por um grande cineasta brasileiro – talvez o maior de todos – Alberto Cavalcanti. Cavalcanti viveu na França, realizou filmes experimentais lá, colaborou com Jean Renoir, morou na Inglaterra, onde fez um dos filmes mais importantes da sua carreira, Dead of the Night – até hoje um clássico do cinema inglês. Foi chamado de volta ao Brasil para estruturar a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, mas foi boicotado e não teve seu trabalho devidamente reconhecido. Voltou à Europa, onde morreu esquecido.

Uma das causas do esquecimento de Alberto Cavalcanti é o desprezo que os cineastas do Cinema Novo tinham por ele, inclusive Glauber Rocha. Com isso, seus filmes nunca foram reconhecidos, e ele não teve espaço para realizar mais filmes no próprio país.

Na arquitetura, o Brasil produziu importantes obras no período do neoclassicismo ou classicismo imperial, especialmente no Rio de Janeiro e no Recife. O arquiteto Alberto Sousa notou inclusive que a arquitetura neoclássica recifense antecipa elementos da arquitetura moderna.

O modernismo arquitetônico, porém, se tornou hegemônico no Brasil como em nenhum outro país a partir do final dos anos 1960. O ideário da arquitetura moderna é até hoje hegemônico na academia brasileira de modo que o país não manteve uma tradição da arquitetura clássica – isso está sendo resgatado aos poucos, hoje em dia.

Na poesia, é emblemático o artigo que Arnaldo Jabor escreveu: “Tolentino trás de volta a peste clássica”, publicado em 1994. Bruno Tolentino tinha voltado ao Brasil um ano antes, e o que mais o surpreendeu foi o desprezo pelas formas clássicas da poesia, a chamada tirania do verso livre.

Vendo os documentários musicais produzidos no Brasil nas últimas décadas observamos a esmagadora maioria dedicada à música popular. Até quando Heitor Villa-Lobos é retratado, o enfoque é dado à música popular que ele produziu. E o Brasil é o país que deu ao mundo importantes compositores de música clássica, não só Villa-Lobos, mas Guerra-Peixe, Marlos Nobre, Almeida Prado. Só que essa riqueza não está representada no cinema como deveria.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

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