Lula Marques/Agência BrasilArthur Lira: presidente da Câmara teve de adiar votação de projeto

Não há lei que detenha a desinformação estrutural

O debate pobre sobre o PL das Fake News e o cerceamento de seus críticos demonstram que já vivemos em uma sociedade dominada pela ignorância dogmática própria das redes sociais
04.05.23

As fake news venceram.

A vitória ficou atestada na última terça-feira, quando a Câmara deveria votar o projeto de lei 2630, que pretende justamente combater a desinformação. Nas horas que antecederiam a votação (que acabou não acontecendo), ouvimos as mais capciosas distorções de fatos e as mais burras simplificações de ideias. A discussão desenrolou-se naquele modo típico das redes sociais: todo mundo – governo, parlamentares, empresas de tecnologia, imprensa – tinha posições fortes e argumentos fracos.

Desta vez, nem se podem culpar os promotores mais espalhafatosos da baixaria política. Nos raros e ralos debates anteriores à terça-feira, os bolsonaristas contribuíram, como de hábito, com um meme: consagraram o epíteto de “PL da Censura” para a proposta legislativa que se intitula pomposamente de Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Na terça-feira, porém, pouco se ouviu dessa turma. Talvez por isso não se tenha percebido o quão desqualificadas foram as discussões. O rebaixamento em que nos encontramos é tal que basta a simples ausência de xingamentos chulos, de bravatas sobre a própria virilidade ou de parlamentares subindo à tribuna com peruca loira para que nos imaginemos em uma república civilizada.

O Google foi o vilão do dia. Reportagem da Folha de S. Paulo denunciou que o mecanismo de busca, quando consultado sobre o PL das Fake News, privilegiava conteúdo contrário ao projeto de lei relatado pelo deputado Orlando Silva. O Google nega: os algoritmos são soberanos e apolíticos. No entanto, a empresa colocou em sua página inicial um link para textos contrários ao PL 2630. Isso não é muito diferente do que os jornais fazem em seus editoriais. Ocorre que, em tese, um site de buscas não participa ativamente do debate público como fazem os veículos de imprensa. A conversa mole sobre a impessoalidade dos algoritmos torna-se bem menos convincente quando a Big Tech apresenta-se como parte interessada. Ao tomar posição, o Google rasgou seu tênue véu de neutralidade.

O editorial do Google – assinado por seu Diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas no Brasil, Marcelo Lacerda – traz pontos importantes. Alerta para o risco de que a pretendida responsabilização das redes por publicações potencialmente criminosas de seus usuários pode incentivar o bloqueio preventivo postagens polêmicas mas legítimas, sufocando a liberdade de expressão. A “responsabilização solidária” do Big Tech é o ponto-chave do projeto.

Lacerda falha, no entanto, ao não substanciar suas críticas, demasiado genéricas. Ele quase não cita o texto do PL. Na rara ocasião em que o faz, a citação parece ser, bem, imaginária. O diretor do Google diz que a lei impede as redes de barrar conteúdo falso e ilegal produzido pelo jornalismo sujo, pois estaria vedada “a remoção de conteúdo produzido por ‘qualquer empresa constituída no Brasil para fins jornalísticos’”. Não encontrei a expressão que ele pôs entre aspas na versão do PL que deveria ir à votação, nem em uma versão anterior que ainda consta no site da Câmara. Só o artigo 32 trata de jornalismo, estabelecendo que os provedores (redes sociais, mecanismos de busca e serviços de mensagens) devem pagar jornais, sites e emissoras de rádio e TV quando publicam conteúdo produzido por elas. O artigo proíbe as redes sociais de excluir conteúdo jornalístico só para fugir ao pagamento, mas nada diz sobre a remoção de textos falsos ou ilegais.

Não seria difícil armar contestações a esses argumentos. Mas o governo não quer saber de debate, como provam as rápidas medidas coercitivas tomadas contra o Google. Flávio Dino, ministro da Justiça, começou a manhã de terça-feira compartilhando no Twitter um post sensacionalista do Sleeping Giants Brasil, que acusa as Big Techs de ganhar dinheiro sobre “a vida devastada de nossas crianças” – referência aos recentes ataques a escolas em São Paulo e Santa Catarina, que deixaram um saldo de cinco mortos. Em entrevista coletiva no mesmo dia, Dino diria que o “faroeste cibernético” mata crianças e adolescentes. A indústria de videogames respira aliviada: já não é mais o grande bode expiatório para ataques homicidas a escolas.

O indefectível Alexandre de Moraes não quis ficar de fora da festa e já tomou suas próprias medidas contra o Big Tech, ordenando que a PF dê uma dura nos diretores brasileiros de Google, Meta e Spotify. Boa parte de imprensa aplaude. Na manhã de terça-feira, acompanhei por algum tempo a cobertura da Globo News. Aprendi que a aprovação do PL 2630 é necessária para evitar novos ataques à democracia e às escolas, e que não há hipótese da lei cercear a liberdade de expressão. Até o momento em que desliguei a TV, não vi ninguém preocupado em discutir (ou sequer informar) o que o editorial do Google diz: bastava repetir que se trata de um “ataque” ao PL e que o Google só defende seus próprios interesses. Os possíveis interesses de empresas jornalísticas na monetização compulsória prevista no artigo 32 não foram aventados.

Na tarde da terça-feira, Arthur Lira puxou o plugue da votação que deveria se dar em regime de urgência. Percebeu que a nova lei não passaria pela casa que comanda. O PL 2630 deve ser recauchutado para adiante voltar ao plenário. Melhorado ou piorado, não fará diferença: a pobreza da discussão desta semana demonstra que a conversa média sobre temas de importância pública segue o modelo estabelecido por Mark Zuckerberg. Ruíram antigas e belas ilusões como o livre mercado de ideias ou a esfera pública: cada partido está isolado em sua confortável bolha, tautologicamente confirmando o viés de confirmação. A opinião dissidente não é mais uma crítica que merece resposta considerada, mas um ataque a ser rechaçado. Assim vai se criando uma sociedade em que a desinformação é, para usar um termo popular nos meios progressistas, estrutural. E isso não é responsabilidade só da extrema direita.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Sempre que surge um novo tipo de mídia de comunicação há mudança social que incomoda o status que vigente. Foi assim com a imprensa e depois com o rádio e a televisão. A rede social incomoda mais porque o seu controle é mais difícil. Difunde mais idiotice, é verdade, mas permite que pessoas que antes não tinham voz possam ser ouvidas.

  2. O vício das decisões autoritárias é tão predominante no país, e os comprometimentos morais (cuidado para não confundir hem?) do Parlamento são tão evidenciados pela sociedade brasileira, que um simples ato de quase independência do Congresso, soa estranho e meio incompreendido.. deixem os caras trabalharem moçada

Mais notícias
Assine agora
TOPO