Foto: Adriano Machado/CrusoéAlexandre de Moraes: atitudes geraram críticas de nível técnico e desconfortos políticos

A escalada de Xandão

Ação do ministro do STF em investigações sensíveis ao ex-presidente fortalecem o magistrado no Planalto, mas criam crises no Judiciário e com o Congresso
04.05.23

Quando o ministro do STF Alexandre de Moraes foi nomeado, em 14 de março de 2019, relator do chamado inquérito das fake news por determinação do então presidente da Corte, Dias Toffoli, a expectativa não era a de que encarnasse um novo papel na ordem institucional brasileira: o de xerife-geral da República.

Nos últimos quatro anos, Moraes, por regras de atração processual do STF, trouxe para a sua alçada outras investigações que miram direta ou indiretamente o agora ex-presidente da República Jair Bolsonaro. Caíram em seu gabinete processos como a ação de investigação por interferência da Polícia Federal, após denúncias do hoje senador Sergio Moro; o inquérito dos atos antidemocráticos e as investigações sobre a balbúrdia golpista de 8 de janeiro. De quebra, Moraes ainda acumula a função de presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com o poder de pautar (e conduzir) 16 processos que podem acarretar na inelegibilidade do ex-chefe de Poder Executivo.

É um poder concentrado, admitem alguns integrantes do STF, que começa a ser visto com preocupação. Na visão de membros da Corte, trata-se de um “mal necessário”. Internamente, Moraes foi visto como o homem certo, no momento certo, para conter “impulsos de caráter golpista” do ex-presidente da República e de seus principais aliados. Considerado ministro linha dura, Moraes hoje está mais “leve” segundo integrantes da Corte. Ele até se diverte com figurinhas de WhatsApp que retratam a atuação incisiva deste “Xandão” contra Jair Bolsonaro.

Em um STF marcado por divisões internas e vaidades, Alexandre de Moraes conseguiu, com a anuência de ministros como Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, dar um ar de coesão interna ao Supremo ao estabelecer freios ao bolsonarismo. Mas esse cenário de coesão interna tende a mudar na visão de alguns integrantes do STF, justamente pela força que Moraes acumulou nos últimos meses. Mais uma vez: poder concentrado demais nas mãos de um só ministro de STF incomoda, e muito, outros integrantes da Corte.

Internamente, essa postura de Alexandre de Moraes já afeta a relação dele com os ministros novatos como Kassio Nunes Marques e André Mendonça. Como eles são minoria, já incorporaram o “espírito Marco Aurélio Mello” – sou feliz, apesar de ser voto vencido. A questão é que outros magistrados, como Gilmar Mendes, já indicam nos bastidores que é necessário se estabelecer contrapontos ao xerife-geral da República. A conversa gira não em torno de “se” isso irá ocorrer, mas “quando”.

Crusoé apurou que, embora concordem com alguns métodos de Moraes, certos ministros da Corte têm demonstrado insatisfação com o caráter permanente de algumas de suas ações. Já há ministros que falam em eventuais abusos por parte do magistrado.

Um exemplo recente diz respeito à Operação Venire, executada na quarta-feira, 3, pela Polícia Federal. A ação mirou Jair Bolsonaro e colocou na cadeia, ainda que de forma temporária, o tenente-coronel Mauro Barbosa Cid — ex-chefe de ordens da Presidência da República e braço direito do ex-mandatário.

Alguns ministros, internamente, ficaram incomodados com as justificativas apresentadas por Moraes em relação à autorização de busca e apreensão na casa do ex-presidente. O magistrado, em conversas reservadas, foi comparado ao ex-juiz Sergio Moro no âmbito da Operação Lava Jato. E Moro é um personagem que passou por intenso bombardeio na corte, culminando na anulação de diversas de suas decisões e na declaração de que ele foi parcial no julgamento de Lula em ações do petrolão. Para parte da Corte, a busca e apreensão na residência de Bolsonaro poderia ser comparada à determinação da condução coercitiva do hoje presidente Lula ao aeroporto de Congonhas em 2016. À época, o método de Moro foi questionado por juristas e por especialistas em Direito Penal. O próprio STF procurou estabelecer parâmetros para esse mecanismo em 2018.

No despacho desta semana, Moraes ignorou manifestações da sub-procuradora-geral Lindôra Araújo e autorizou a busca e apreensão. Lindôra questionou a falta de elementos probatórios que justificassem a ação. O ministro rejeitou argumentando:

Não há qualquer indicação nos autos que conceda credibilidade à versão de que o ajudante de ordens do ex-presidente da República Jair Messias Bolsonaro [o tenente-coronel Cid] pudesse ter comandado relevante operação criminosa, destinada diretamente ao então mandatário e sua filha L. F. B. [Laura Bolsonaro], sem, no mínimo, conhecimento e aquiescência daquele, circunstância que somente poderá ser apurada mediante a realização da medida de busca e apreensão requerida pela autoridade policial”, disse Moraes na decisão.

Em outras palavras, o que Moraes disse foi que, se não há provas ligando Bolsonaro ao esquema de Mauro Cid, a casa do ex-presidente deve ser devassada para que se encontre alguma evidência. Se a Justiça se guia pelo preceito de que todos são inocentes até prova em contrário, Moraes parece achar que todos são culpados, só falta achar a prova.

Outro questionamento é sobre a manutenção da prisão preventiva do ex-secretário de Segurança do Distrito Federal e ex-ministro Anderson Torres. Ele está sob custódia desde janeiro no Batalhão de Aviação Operacional, em Brasília. A defesa de Torres já tentou livrá-lo da prisão temporária, mas Moraes sempre apresentou o mesmo argumento: o ex-ministro ainda ofereceria risco à ordem pública, apesar de não ter mais qualquer condição de destruir provas ou de interferir na ordem democrática.

Interlocutores de ministros do STF atestam que, a esta altura do campeonato, Torres já poderia ter sido beneficiado com alguma medida menos gravosa que a prisão, como a utilização de uma tornozeleira eletrônica. O benefício já foi concedido a outros personagens da órbita bolsonarista, como o deputado Zé Trovão e o ex-presidente do PTB Roberto Jefferson.

E o incômodo não é somente técnico. Há também o desconforto político. Alguns membros do STF avaliam que Moraes tem feito vários acenos ao governo PT de olho na vaga do agora ex-ministro Ricardo Lewandowski, que se aposentou em maio. Para Moraes, a cadeira deveria ficar com o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão. Quando esse último esteve no Tribunal Superior Eleitoral, os dois foram aliados. Nesse período, Salomão ajudou a conter os ataques aos integrantes da corte eleitoral, antes do pleito do ano passado.

Os gestos de Moraes têm sido retribuídos. O presidente Lula e ministros do núcleo duro do governo, como Flávio Dino (Justiça) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais), elogiam a atuação do xerife-geral da República. Para eles, é imperativo estabelecer um freio ao bolsonarismo. Politicamente, na visão de aliados do presidente Lula, as ações de Alexandre de Moraes, conforme Crusoé apurou, são vistas como essenciais para o próprio petismo. Motivo: elas têm o condão de enfraquecer o ex-presidente da República para o próximo pleito.

Eis aí outro ponto de dissonância, reconhecido em conversas reservadas inclusive por petistas como Zeca Dirceu (PR), líder do partido na Câmara: tal qual o ditado popular, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose.

Nesta semana, surgiu entre deputados e senadores um sentimento de que eventuais abusos de Moraes em determinadas ações podem ter o efeito contrário: em vez de enfraquecer o bolsonarismo, determinadas decisões poderiam fortalecê-lo.

Explique-se: ao ser alvo de ações que possam ser vistas como excessivas, Bolsonaro, na visão até mesmo do PT, pode posar de vítima do sistema. Na visão de integrantes do Planalto, esse discurso poderia colar no ex-presidente, apesar de não ter funcionado para Lula, preso após as investigações da Lava Jato. “Acredito que a questão da vacina é um fato a ser investigado, mas acho que houve excessos na decisão [do ministro do STF]“, disse o ex-presidente da CCJ, deputado Felipe Francischini (União-PR).

Em conversa com deputados aliados na quarta, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), teceu críticas a determinadas atuações do magistrado. Mas oficialmente Lira não pode confrontá-lo. Afinal de contas, como chefe de Poder, qualquer palavra mal interpretada pode intensificar uma crise entre o Congresso e o Poder Judiciário.

Por isso, Lira escolheu uma entrevista à GloboNews, na quarta-feira, para dar seu recado político. “O que aconteceu hoje do ponto de vista sanitário é preocupante, mas do ponto de vista político, a gente tem que ter muita cautela. Nós não precisamos de mais nenhum acirramento político e social nesse país”, disse Lira.

Desde o início do ano, Lira tem negociado com Moraes uma trégua para determinados deputados bolsonaristas que cometeram excessos no passado. Em fevereiro, ele procurou Moraes para fazer um “pedido de clemência” em nome da deputada Carla Zambelli (PL-RJ), após a parlamentar ter sido flagrada incorporando o espírito da policial Kathy Mahoney (do seriado dos anos de 1980 – A Dama de Ouro) nas ruas de São Paulo.

Lira também já procurou Moraes para distensionar relações envolvendo outros deputados como Zé Trovão (PL-SC) e o ex-parlamentar Daniel Silveira (PL-RJ).

No Senado, Rodrigo Pacheco, com seu jeito diplomático, tem evitado a qualquer custo tensionar relações com Moraes. A ala bolsonarista do Senado sabe que essa não é das melhores ideias, tanto é que parlamentares como Ciro Nogueira (PP-PI) e Rogério Marinho (PL-RN), os dois principais líderes da oposição ao governo Lula na Casa, têm medido cada palavra para se referir ao ministro e presidente do STF.

Apenas a ala mais radical do Senado partiu para o enfrentamento ao magistrado. O senador Eduardo Girão (Novo-CE) foi o único que solicitou esse ano pedidos de informação com alguma relação com o magistrado. E, ainda assim, referente a uma suposta irregularidade sobre utilização de aeronaves da FAB por integrantes da Suprema Corte.

No Senado, existem hoje três pedidos de impeachment envolvendo Moraes. Todos impetrados por pessoas físicas. Alguma chance de eles avançarem? Nenhuma, admitem líderes do Senado.

O fato é que, com um Poder Legislativo acuado e um Poder Executivo dependente, o STF se empodera e vê em Alexandre de Moraes o grande balizador-geral da República. A pergunta que fica, porém, é essa: isso é bom para a democracia brasileira? Só o tempo dirá.

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  1. Respondendo a pergunta final: é claro que o excesso de poder na mão de um só ministro não é bom para a democracia. Quem precisa de um balizador-geral da República? Esta figura não existe no nosso ordenamento jurídico e tem configurado um mal (não necessário) pois resulta de arbítrio de uma só pessoa movida, quase sempre, por interesses pouco confessáveis, como mostrou a matéria. Se o país já dispensou o pretenso poder moderador das FFAA vislumbrado no art. 142 da CF, fiquemos mesmo nos 3 poderes

  2. O fuzilamento dos dissidentes da ditadura de Fidel Castro , à época, também era um "mal necessário". Bem... Para quem interessa o "mal necessário"? Fica o questionamento.

  3. Já que o senhor um pauta tem nome de Imperador, poderíamos alcunhá-lo de "Alexandre, o justiceiro". Como sempre digo aqui, minha esperança é que a História é o povo brasileiro, por meio de sua classes representativas, julguem, no futuro, as atitudes desse senhor que extrapola todos os limites razoáveis sob o olhar complacente do governo, da mídia aderente e que está impondo um regime de exceção tal qual o que ele diz combater.

  4. O stf sendo o stf minúsculo. Espera-se o que ? De uma "corte" constituída exclusivamente por filhotinhos de políticos corruptos.

  5. Fico comovido com o chororô bolsonarista, no texto (discreto, é verdade...) e nos comentários. Mas estou convencido de que Moraes age com correção e perfeito senso de oportunidade. Passará para a história como o grande salvador da democracia no País nos anos 20 deste século.

  6. Na minha modesta opinião, na atuação do Ministro Alexandre de Moraes, pode haver alguns excessos, mas é um mal necessário para o momento.

  7. Incrível essa reportagem !!! É flagrante as atitudes antidemocráticas do Alexandre de Morais … já saiu da razoabilidade e proporcionalidade tem tempo !!!

  8. Sem dúvidas, como disse alguém em comentário abaixo, a pior composição da suprema corte (em minúsculas propositais e proporcionais) que se tem notícia. Seria demasiado falar em ditadura do judiciário? Quem passou por salas de aulas em um curso de Direito tem dificuldades de aceitar o que se vê hoje, salvo se nossas aulas, de Direito material e/ou processual estiveram muito erradas. Quanto ao epíteto Xandão só aos olhos do próprio. Para os demais cidadãos, Xandinho soa melhor e mais coerente.

    1. ...dificuldades em aceitar... ...salvo se nossas aulas, de Direito material e/ou processual, estiveram...

  9. Como confiar na justiça brasileira que está longe de ser cega como deveria. Estamos vivendo uma ditadura do judiciário!

    1. Perfeito seu comentário, Ernesto. Nunca me esqueço de uma frase do ministro Dias Toffoli, vangloriando-se das novas atribuições do STF: "somos os editores da nação", ou seja, não vamos apenas atuar com base na Constituição mas também atuar como condutores políticos.

  10. Na falta de um emoji esfregando as mãos de contentamento fico com este aqui: 😎 Que a pior composição na história do STF continue assim, avante e para o alto, pq como já intuía o grande A.C.Belchior, “Você não sente nem vê / mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo / que uma nova mudança em breve vai acontecer / e o que há algum tempo era jovem, novo, HOJE É ANTIGO…”, e quem hoje se beneficia amanhã… vá saber? 😄😄😄 Pega 🔥 🔥🔥🔥, CABARÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ… Ademã que eu vou em frente.

  11. O gênio já não volta mais para dentro da lâmpada. Moraes se crê um cavaleiro de armadura dourada defendendo a democracia. E, para o fazer, está disposto a golpeá-la vezes sem conta. Os fins justificando os meios. A única saída seria um senado composto por políticos com fibra e sem rabo preso, mas o que temos é gente minúscula e parasitária.

  12. De fato, com a miscigenação da política sobrepondo-se a justiça, que ao meu ver deveria ser poder independente e técnico, deixa-nos todos às sombras dos fatos e consequências técnicas-jurídicas, quando nos leva a flexibilizar totalmente a condenação de corruptos criminosos, em função de narrativas e interesses políticos. O maior exemplo que posso citar é que, não há dúvidas que a corrupção reina em nossa Nação, mas não encontramos nenhum corrupto condenado e preso. Sem punição, não há justiça.

  13. O deslumbramento imperial do Moraes prejudica a democracia no país. Hoje quem apoia seus métodos e decisões poderá ser vítima dos desmandos amanhã e então verá o tamanho da cobra que foi criada e alimentada. Devia ter mais respeito com as leis e com a Constituição.

  14. As ações do ministro Moraes mostram que no Brasil nem sempre o "pau que bate em Chico bate em Franscisco".

  15. Moraes é péssimo para a democracia brasileira Passa por cima da própria Constituição para bancar o xerife do país. Aliado do PT e de Lula, de quem foi cabo eleitoral, ele se tornou o verdadeiro inimigo da democracia.

  16. Esse cara, ah sorry my friend, essa figura dismórfica que ocupa uma função a qual ele mesmo, o próprio, no passado, dizia “cobras e lagartos”, transformou-se, de repente, no Stálin do sec XXI. Todos têm medo dele, dos seus arroubos de intransigência, e do seu “quem manda aqui sou eu, e daí”? Misogenou-se num “paladino da lei e da ordem” só que não. E vou dizer, não foi culpa só dele.. culpa maior dos seus iguais, parceiros de cadeiras, e calados por pura e ilegítima conveniência.

    1. Exatamente, aliás todo o ditador inicia sua carreira assim, como um mal necessário tolerado e até incensado por todos e quando quem deveria impor limites, se da conta de que todos os limites já foram transpassados, já é tarde

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