Anderson Riedel/Palácio do PlanaltoPiquet participa de inauguração de ponte sobre o Rio Madeira, em 2021, ao lado de Bolsonaro

Os atletas geniais são idiotas?

O que consideramos burrice nos maiores desportistas da história pode ser a essência de seu talento
31.03.23

Nelson Piquet é tricampeão mundial de Fórmula 1. Nas 73 temporadas da modalidade, apenas 34 pilotos conquistaram esse campeonato, três deles brasileiros. É muito difícil, muita pressão, exige muita dedicação e as corridas cobram duramente os corpos dos competidores, que perdem até seis quilos por prova. O mesmo Piquet foi condenado na semana passada por ofensas vulgares e gratuitas a outro campeão mundial, o inglês Lewis Hamilton, recordista de títulos ao lado de Michael Schumacher. É minha deixa para recuperar um tema esboçado na última coluna: os atletas geniais são inevitavelmente idiotas?

Idiota, no caso, não quer dizer mau-caráter. Trata-se mais de uma limitação intelectual, da falta de capacidade de entender e descrever aquilo que faz deles especiais. O americano David Foster Wallace reflete sobre o assunto em How Tracy Austin broke my heart, de 1992. O ensaio trata de sua frustração com as memórias da tenista prodígio, que se tornou a número um do mundo aos 18 anos, mas encerrou a carreira cedo demais, por questões físicas.

A verdadeira genialidade indiscutível é tão impossível de se definir, e a verdadeira técnica tão raramente visível (muito menos televisível), que talvez esperemos automaticamente que pessoas que são gênios como atletas sejam gênios também como oradores e escritores, que sejam articuladas, perspicazes, verdadeiras, profundas”, analisa Wallace, um ex-tenista mirim que acabou se tornando um dos mais celebrados jovens escritores americanos deste início de século.

Mas Tracy Austin — ou seja lá quem a ajudou a escrever o livro — não consegue ir além de platitudes sobre sua meteórica e empolgante carreira. “Existe aquele pequeno extra que alguns de nós estão dispostos a dar e outros não estão. Por quê? Acho que é o desafio para se tornar o melhor”, escreve a tenista em Beyond Center Court’s, entre outros constrangedores exemplos expostos por Wallace, como seu comentário sobre o rigor das competições profissionais: “Todo atleta profissional tem de estar muito bem ajustado mentalmente”.

A notoriedade dos grandes atletas leva a cobranças constantes por posicionamentos políticos, para os quais eles geralmente não estão preparados. Quando eles cedem às pressões e abrem a boca, o resultado vai da frustração completa e total à tolerância estratégica, a depender do grupo ideológico pelo qual o jogador será adotado.

Maradona apoiava ditadores, Pelé não se opôs à ditadura, Neymar pediu voto para Jair Bolsonaro, Tom Brady gostava de Donald Trump, LeBron James é contra a opressão nos Estados Unidos, mas não na China. E nenhum deles sabe exatamente sobre o que está falando — não precisam saber, ninguém é obrigado a ter opiniões sobre tudo, mas também não deveriam falar apenas porque suas proezas físicas são admiradas por multidões, sob o preço exato de deixarem de ser admirados.

Para Wallace, não é por acaso que usamos a expressão “talento natural” para falar de atletas geniais, porque “eles podem agir por instinto, memória muscular e vontade autônoma, de modo que agente e ação sejam um só“. “Grandes atletas podem fazê-lo mesmo sob pressão e escrutínio intensos. Eles podem resistir a forças de distração que quebrariam em duas uma mente propensa ao medo autoconsciente.”

É nessa capacidade de resistir à distração que moraria não apenas o que nos soa como burrice, mas o grande trunfo dos maiores atletas da história. É o que os diferencia dos ótimos adversários, para além da dedicação, dos treinos e da aptidão física. “A resposta real e multifacetada para a pergunta sobre o que passa pela cabeça de um grande jogador quando ele está no centro do barulho hostil da multidão e se alinha para o lance livre que decidirá o jogo pode muito bem ser: absolutamente nada”, arremata o autor de Infinite Jest.

Estaria reservada para nós, meros mortais, a faculdade de perceber — e a consequente missão de traduzir e explicar — os feitos esportivos geniais. Bem distante dos primeiros lugares do ranking da Associação de Tenistas Profissionais (ATP), Wallace foi eloquente o bastante sobre isso: ”Pode ser que nós, espectadores, que não temos o dom divino como atletas, sejamos os únicos capazes de ver, articular e animar verdadeiramente a experiência do dom que nos é negado. E que aqueles que recebem e representam o dom do gênio atlético devem, forçosamente, ser cegos e burros sobre isso — e não porque a cegueira e a burrice sejam o preço do dom, mas porque são sua essência.”

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  1. Perfeito. O atleta destaca-se na sua área de expertise, o que passa longe de significar que a sua genialidade se transporta a outras áreas. Buscar neles um guia intelectual ou cultural é burrice.

  2. Sao idiotas! Não só atletas geniais como artistas, músicos e celebs em geral… Idiotas e muitos deles são tb mau caráter!

  3. Acho que pode estar relacionado a baixa escolaridade, visto em muitos destes atletas, que tinham outro foco durante a fase de desenvolvimento. Há exceções, cito duas: Tostão e Sócrates.

  4. Não só atletas geniais. Artistas geniais, cientistas geniais, muitas vezes tb são assim. É ver o q sai da boca de muitos grandes atores e cantores q temos.

  5. O piloto Piquet foi um de meus ídolos do automobilismo porque, além de pilotar como um campeão, participava ativamente do desenvolvimento da máquina para torná-la competitiva em suas mãos. Mas, era arrogante, intolerante, incapaz de ser visto como Airton Sena, um Hamilton. Só faltava apoiar o Jair, ser derrotado em suas pretenções e guardar as joias suspeitas debaixo de seu teto para tornar-se um campeão do oportunismo mal dirigido.

  6. Quem acompanha F1 de há muito e já a viu desde Emerson, não tem duvida: ele é sofrível. Compare-o com o Emerson, por exemplo, e terá a resposta.saindo do Brasil, não me lembro de declarações puris de Vettel ou Hamilton.

  7. O mito de que músculos competem com inteligência vem do pai da neurociência, Ramón y Cajal. Foi baseado em uma observação de si próprio, sem nenhuma evidência científica, mas dada sua fama, prosperou. O cientista, com certa idade, foi orientado a praticar exercícios. Observando sua perda cognitiva, oriunda de processos degenerativos, associou-a erroneamente ao ganho de massa muscular decorrente dos exercícios. É um erro insistir nessa tese. Exercícios fazem bem para o cérebro e para a mente.

    1. Fazer bem é diferente de fazer brotar neurônios. Einstein e Hamilton ou Pelé ou Brady não tem o mesmo cérebro.

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