Foto: Diogo Zacarias / MFHaddad explica o novo arcabouço fiscal ao lado de Simone Tebet: revisão bem-vinda

O teto de gastos está morto. Viva o teto de gastos

O novo regime fiscal proposto pelo governo é mais brando, mas é um limitador de despesas do princípio ao fim
30.03.23

Com nomes como Brad Pitt, Christian Bale e Margot Robbie, o filme A Grande Aposta (The Big Short), conseguiu a proeza de colocar nas telas de cinema uma história envolvente em torno de um assunto entediante: os credit default swaps, os tais derivativos.

O filme é um excelente resumo da crise de 2008, o que, dada a bagunça no sistema bancário atual, garante a você uma boa desculpa para assistir ou rever. Disponível no Prime Video, o filme é uma adaptação do livro de mesmo nome escrito por Michael Lewis, um jornalista que escreve para a Vanity Fair e o The New York Times.

Menos conhecido, porém, é o livro lançado na sequência por Lewis,  Boomerang, que narra as consequências da crise de 2008 nos chamados PIGS, uma abreviação nada lisonjeira (dado que PIGS significa “porcos” em inglês), para Portugal, Itália, Grécia e Espanha.

Os quatro países em questão possuem alguns traços culturais similares, mas o denominador comum abordado por Lewis é o elevado endividamento em relação ao PIB, além dos constantes déficits públicos.

Com exceção da Itália, os outros três países se destacam por serem significativamente mais pobres do que as três maiores potências da União Europeia na época da sua adesão ao bloco (França, Alemanha e Reino Unido).

Ainda assim, a despeito da disparidade, e como consequência de uma unidade monetária (o Euro e o Banco Central Europeu, BCE), o mercado entendeu que esses países eram muito mais seguros do que de fato eram.

Grécia, Portugal e Espanha em especial, passaram a captar recursos com juros iguais aos alemães. A diferença estava no apreço pela responsabilidade fiscal da Alemanha e dos outros países.

Com a dívida, Portugal construiu a sua Eurocopa, a Grécia suas Olimpíadas e a Espanha uma extensa e deficitária rede de trens de alta velocidade. Foram inúmeros gastos, seguidos pelo descaso com questões como previdência e custo da máquina pública.

Quando a crise de 2008 chegou, a maré baixou, deixando nítido quem estava nadando pelado.

Os países se viram forçados a reconhecer dívidas muito maiores do que alardeavam, além de déficits elevados.

Para compensar, entraram em uma onda de “ajustes”.

Em 3 de maio de 2013, com um déficit de 6,6% do PIB (pouco menor do que o do Brasil hoje), além de uma dívida de 120% do PIB, Portugal anunciou algumas medidas para conter a crise:

  • Cortes de 30 mil empregos públicos.
  • Aumento da idade mínima de aposentadoria para 66 anos (quem se aposentar antes pode perder até 40% do benefício).
  • Corte de 10% em aposentadorias
  • Aumento da jornada de trabalho de 35 para 40h semanais
Agora, imagine por um instante que em 2017 o Brasil anunciasse que para sair da grande depressão de 2014-16, precisaria realizar um ajuste similar.

Não seria razoável esperar nada menos do que um caos social.

Nota: de fato estivemos à beira de algo similar. Em 2015 o governo Dilma anunciou cortes de 85% em programas sociais, além de aumentar o tempo para pedir auxílio desemprego.

Por sorte, o governo brasileiro entendeu a situação e as formas corretas de lidar com uma crise fiscal. Em 2017 lançamos o teto de gastos. Um ajuste pesado, mas que seria feito em 10 anos, sem qualquer corte de benefícios sociais.

Crises fiscais não são exatamente uma novidade. Para alguns historiadores, as crises fiscais contribuíram inclusive para o fim do império romano, como quando em 301 d.C, o imperador Diocleciano promulgou o Edito Maximo, uma espécie de PEC que congelava salários e preços, além de diminuir a quantidade de metal precioso presente nas moedas (o famoso “imprimir dinheiro”).

Em casos recentes e mais adequados à nossa realidade, é possível depreender uma lição valiosa sobre “ajustes funcionais”.

Nos anos 90, por exemplo, a Suécia e a Finlândia, dois expoentes de gastos sociais e investimentos públicos, entraram em uma Grande Depressão.

Foram 4 anos de crise, com impactos significativos em crédito, bancos e indicadores sociais. A solução, além de um PROER e reestruturação bancária, foi ancorar as expectativas.

Países bem sucedidos em ajustes fiscais entenderam que mais importante do que o agora, é a tendência.

Para o mercado pouco importa o resultado fiscal do ano em questão. O que importa é saber para onde a situação está caminhando.

Neste sentido, o teto de gastos, ainda que envolva crescimento real da despesa (acima da inflação), é fundamental.

O mercado se interessa em saber quanto o governo irá precisar de recursos para se financiar, pois dado o peso do Estado na economia, esse volume  impacta significativamente o quanto de recursos sobrará para famílias e empresas, ajudando assim a definir os juros (o preço do dinheiro).

Quando o Estado eleva seus gastos, ele o faz com aumentos de impostos, ou contraindo dívidas que terão de ser pagas futuramente. Isso significa limitar a quantidade de recursos que as famílias poderão gastar, além de limitar o quanto as empresas terão à disposição para investir.

Um teto de gastos diz, de maneira simplificada, que o governo se compromete no longo prazo a tornar as coisas mais previsíveis. E é por isso que mesmo que a situação esteja ruim hoje, o mercado garante um bônus de confiança.

Por meio desse instrumento, o Brasil conseguiu reduzir seus juros de maneira significativa entre 2017-2020, afastando o risco de colapso que existia no período do impeachment.

Só há um problema nessa história: como qualquer ajuste, o teto de gastos brasileiro (como o da Suécia, Finlândia, França e outros), foi feito em meio a uma crise de confiança.

A grande questão, portanto, está no que fazer quando a confiança é retomada.

No Brasil de 2021-22 vimos as receitas de governos (federal e estaduais), chegarem a crescer 30%, graças à alta de preços de combustíveis, além da elevação de preços de commodities pós-guerra na Ucrânia.

O resultado foi uma melhora significativa nas contas, levando os políticos a concordarem que o ajuste não precisaria seguir sendo tão pesado (especialmente num ano de eleição).

Nosso teto de gastos não resistiu ao ímpeto de gastos públicos por parte dos políticos, em especial por ser de fato extremamente rígido, prevendo crescimento zero na despesa.

Em todos os países citados aqui como exemplos de regimes similares, há alguma folga no crescimento da despesa.

Fizemos um ajuste pesado em um período de dificuldade que não resistiu à  prova do tempo.

Agora Fernando Haddad decidiu apresentar um novo “arcabouço fiscal”.

A regra em nada agradou o campo político do qual Haddad faz parte, pois mantém uma limitação de gastos (convém lembrar que o próprio Lula é um crítico da palavra gasto, preferindo distorcer a realidade e tratar tudo como investimento).

O novo arcabouço fiscal é uma revisão bem vinda do teto, feita em um momento de menor pressão do que o teto original.

A situação fiscal do país é hoje melhor do que era em 2017. Tivemos pela primeira vez, com Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, um governo que terminou com despesas em relação ao PIB menores do que iniciou. Um feito permitido pelo teto de gastos, ainda que este tenha sido furado em várias ocasiões.

Nossa situação atual permite uma tolerância maior, mantendo as expectativas a longo prazo.

O novo arcabouço, porém, possui alguns problemas.

Não há mais necessidade de dois terços do Congresso para mudar, ou emendar, o teto. Agora basta uma maioria simples.

Outro fator negativo está na ausência de punições reais pelo descumprimento do que foi estabelecido. Descumprir o teto implicava em crime de responsabilidade fiscal. Agora, corremos o risco de o descumprimento culminar em algo similar ao que ocorre quando a meta de inflação não é cumprida: o presidente do Bacen envia uma cartinha ao congresso e tudo certo.

O mais negativo nessa mudança, porém, está no fato de que o governo não precisará mais ir ao congresso conversar quando quiser aumentar os gastos.

Apenas o fato de o governo precisar se explicar quando pretende gastar, já era positivo. Agora ele está autorizado a gastar mais, até determinado patamar.

Em suma, mantemos as qualidades de um teto de gastos: a previsibilidade, o ajuste fiscal contínuo e ancoragem das expectativas.

Perdemos detalhes importantes.

Mas, se cumprido, o novo arcabouço implicará que pela primeira vez, esquerda e direita concordam por aqui que o gasto público não pode crescer sem limites.

Convém lembrar que, entre 2002 e 2015, o gasto público cresceu 6% acima da inflação. No novo arcabouço, o limite máximo será de 2,5%. Um avanço e tanto.

 

Felippe Hermes é jornalista

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  1. Às Ciências econômicas cabe apontar o custo das coisas. Às artes(?) políticas cabe escondê-lo. Fazenda e Planejamento nas mãos de políticos ( e que políticos). Esperar o quê? Agora respeitemos, eles são bom de nomes. Contabilidade criativa, Arcabouço Fiscal, blá, blá, blá, tudo a nos levar a mais alguns anos perdidos, outra coisa em que eles, petistas, são imbatíveis.

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