Beethoven incluiu um coral em sua última sinfonia, algo inédito até então

O estético e o extraestético

Uma obra feita com base numa concordância absoluta de valores vitais reconhecidos é apenas kitsch. Para virar arte, é preciso influir na relação entre o homem e o real
31.03.23

Há no livro Formalismo & Tradição Moderna, de José Guilherme Merquior, uma epígrafe que por si só dá ensejo a uma reflexão bastante abrangente sobre arte. É do crítico polonês Jan Mukarovsky. Escreve ele: “Uma obra calculada com base numa concordância absoluta com valores vitais reconhecidos é sentida como fato possivelmente estético, mas não artístico – é sentida como algo simplesmente agradável (kitsch). Somente a tensão entre valores extraestéticos da obra e os valores da coletividade confere àquela a possibilidade de influir na relação entre o homem e o real, que é a missão própria da arte”.

Podemos pensar a história da arte como um progressivo acréscimo do extraestético ao estético. É que as formas da arte se esgotam, deixam de dialogar com o real e se fecham em formalismos. Claro, todo artista parte de estruturas formais já estabelecidas, ele não cria do zero. Só que a tendência é que a forma seja copiada cada vez mais exteriormente, tornando-se uma caricatura. É por isso que os estilos decaem. Aí é preciso uma renovação. É preciso injetar realidade nas formas da arte.

Existem momentos em que esse processo fica muito evidente. Na década de 1960, a indústria cinematográfica estava em crise – aquelas grandes produções em Cinemascope começaram a dar prejuízo. E pior: já não inspiravam mais. E aí surgiu uma geração que ficou conhecida como Nova Hollywood e trouxe não só uma nova linguagem cinematográfica, mas também novos temas. Ou seja, trouxe valores extraestéticos ao cinema.

Algo semelhante aconteceu com outros movimentos cinematográficos como o Neorrealismo Italiano, a Nouvelle Vague, o Cinema Novo no Brasil. Mas todos eles, com sua linguagem e suas convenções, vieram a repercutir em inúmeras outras obras, e se esgotaram. Aí, mais uma vez, é preciso trazer elementos extraestéticos.

A música sinfônica é outro exemplo bem palpável do acréscimo do extraestético ao estético. A sinfonia, criada no período clássico, teve ao longo da história um aumento do número e da variedade de instrumentos utilizados. Beethoven acrescentou à sua nova e última sinfonia um coral, fato inédito. Para se ter uma ideia da importância dessa sinfonia, o CD foi feito para ter 70 minutos exatamente para caber a Nona de Beethoven. Berlioz acrescentou a harpa e o trompete à sua Sinfonia Fantástica, escrita apenas três anos após a morte de Beethoven.

Gustav Mahler foi importante nesse processo: ele compôs a maior obra do repertório sinfônico em termos de extensão, com uma hora e 39 minutos, a Sinfonia no 3. Compôs também a maior obra sinfônica em número de músicos, a Sinfonia dos Mil, a oitava do compositor – que tem esse nome porque exige quase mil músicos para ser executada. Depois disso, ficou difícil uma evolução nesse sentido. Mas sempre dá para fazer algo original: Saint-Saens, por exemplo, compôs uma sinfonia com órgão em 1887.

Um sentido que facilmente se observa na história da música é o aumento progressivo do volume sonoro. Diz Eduardo Hanslick no livro Do Belo Musical: “O posto de Mozart, como representante de paixões violentas e arrebatadoras, foi ocupado por Beethoven, e Mozart foi promovido ao olímpico classicismo de Haydn”.

Existe um episódio do programa de TV chamado O Belo e a Consolação, com participação de George Steiner. O programa começa com uma questão intrigante: “Ninguém sabe a razão do crescente ruído da nossa cultura. Uma sinfonia de Haydn é menos barulhenta do que uma de Beethoven. Beethoven tem muito menos decibéis do que Wagner, enquanto Stravinski é dez vezes mais alto que uma sinfonia de Haydn”. Talvez a explicação esteja no acréscimo do extraestético. O ruído da cidade contemporânea não poderia ficar de fora da música, de uma forma ou de outra. Tom Jobim conta que foi visitar Heitor Villa-Lobos em seu apartamento no Rio de Janeiro e lá viu o seguinte cenário: estava ele fumando, compondo, enquanto uma sinfonia dele próprio tocava na vitrola, crianças choravam, vinha um barulho da rua. Era o verdadeiro caos. Desse caos ele criou uma obra bastante original.

Desse processo de trazer o extraestético para a arte resulta um processo de especialização. Uma vez rompidos os moldes anteriores, fica difícil voltar. Mas existem exceções. Prokofiev compôs em pleno século 20 uma sinfonia nos moldes clássicos. E a sinfonia é interessantíssima. Uma coisa é certa, porém: a criação artística depende de um intercâmbio direto com o real. Deve ser por isso que Auguste Rodin escreveu no livro Grandes Catedrais: “Não é procurando roubar o segredo pessoal do seu gênio que alcançamos os mestres; é estudando, como eles, a natureza.”

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo

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  1. Nossa! Gostei de ver o nível deste artigo, Josias. Entendo pouco de música, mas um pouco de estética para poder compreender onde você quer chegar ao falar sobre o extraestético. Parabéns, concordo plenamente.

  2. Você foi excepcional nesse artigo sobre o tempero da arte com o contra-canto do extraeste’tico. Sim, Beethoven usou a natural voz humana para revolucionar o direitismo/esquerdismo rançoso dos clássicos. Nosso Villa Lobos, considerado caótico pelos “puristas”,também. Belo artigo. Seus exemplos (e comparações) são excelentes. Para mim só faltou citar os meninos de Liverpool e o maestro gênio que os regeram. Ganhei um belo final de semana. E viva a Natureza, fonte inesgotável de criação! Deus??

    1. Haydn ao lado de Beethoven e Mozart compõem a chamada Trindade Clássica.

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