José Cruz/Agência BrasilComemoração do Bicentenário da Independência em Brasília; esquerda e direita se uniram no desprezo pela data

O ódio ao passado

O desprezo pelo passado contaminou a nação; as pessoas pararam de pensar o país para brigar com os outros ou com os antepassados
17.03.23

À medida que o tempo passa, e se acumula toda uma vasta bibliografia, o marxismo vai parecendo cada vez mais uma legítima tradição. Só que o elemento destrutivo e antitradicional é preponderante no marxismo. Seja no âmbito econômico — os países que colocaram em prática a economia marxista viram métodos muito antigos de trocas econômicas serem destruídos pelo sistema planificado —, seja no âmbito cultural, em que toda a história humana é reduzida a luta de classes e “exploração do homem pelo homem”. Até a religião é tratada como ópio do povo.

Se bem que a história da destruição acabou virando uma tradição à parte. Podemos chamá-la de uma tradição negativa? Uma “tradição” que vai cada vez mais fundo no sentido de desenraizar o homem de tudo que o liga ao passado. Diz Marc Fumaroli no livro O Estado Cultural: “O marxismo e seus vários substitutos ou derivados têm o passado como principal adversário”. E mais: “O monumental fracasso do modelo econômico marxista deveria, em princípio, curar-nos de sua transposição para as coisas da arte e do espírito, todavia mais frágeis. Por ora, nada”.

O livro de Fumaroli é de 1991. Ele não chegou a registrar o advento do identitarismo e seus efeitos na política cultural. Para entender o que aconteceu, é preciso buscar fontes mais recentes, não obstante a chave de Fumaroli permanecer válida: é tudo motivado pelo ódio ao passado.

Antonio Risério, no recente livro A Crise da Política Identitária, diz que o grande inimigo dos identitários é a nação, seja ela qual for. Eles enxergam um modelo semelhante ao marxista, de luta de classes, porém aplicado a grupos sociais de raça e gênero. “É nessa direção que multiculturalistas (…) falam em passar ao largo da cidadania nacional em favor da opção pela ‘cidadania cultural’, que é francamente grupocêntrica, vale dizer, uma ‘cidadania’ fundada na identidade do negro, de mulher ou de latino”. Para aplicar tal modelo esquemático, é preciso falsificar a história, ainda mais num país miscigenado como o Brasil.

No livro anterior, Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária, Risério trata de apontar uma por uma as incoerências desse pensamento, que ele nomeia muito apropriadamente de “marxismo caricatural”. O identitarismo radicalizou-se de tal forma — impondo regras raciais e de gênero à produção artística, censurando filmes, livros, conferências, agredindo pessoas por causa do pensamento divergente em universidades —que a esquerda mais antiga tem se distanciado cada vez mais. Os dois nomes mais relevantes no Brasil de hoje são Aldo Rebelo, ex-ministro dos governos Lula e Dilma, e o escritor Nelson Ascher. Todos eles dizem: não fui eu que mudei, a esquerda é que mudou. E é a pura verdade.

Esquerda e direita acusam-se mutuamente de ser a origem do problema. No famoso debate entre Jordan Peterson e Slavoj Zizek, o psicólogo canadense diz que o maniqueísmo da política identitária descende diretamente da linhagem marxista. Já o filósofo esloveno diz que a política identitária é consequência da fase atual do capitalismo e do individualismo da sociedade de mercado. O próprio Risério começa o texto “A negação da nação” nos seguintes termos: “O identitarismo, em última e mais profunda análise, é sintoma da patologia social norte-americana que o imperialismo se encarregou de espalhar pelo mundo”. Olavo de Carvalho certamente definiria de outra forma o problema.

Uma coisa é certa, porém: esquerda e direita se uniram no desprezo pela data mais importante do país, o Bicentenário da Independência. Risério compara a data com o Centenário da Independência, cem anos antes: “Em 1922, nossos artistas, cientistas, políticos, intelectuais etc. se engajaram num projeto de faces diversas, mas tinham como meta central o conhecimento da nossa história e a modernização do nosso país. Em 2022, ao contrário, o objetivo é negá-la”.

O desprezo pelo passado contaminou a nação. As pessoas simplesmente pararam de pensar o país para brigar com os outros ou com os antepassados. Só que não é possível se livrar do passado. O passado vive e age constantemente no ser humano, queira ele ou não. O máximo que o homem consegue é deixá-lo agindo inconscientemente, ou seja, de modo irrefletido. É preciso trazê-lo à tona: de uma forma ou de outra, a história da cultura está ali na nossa alma.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. O brasileiro ideia o Brasil e suas origens. Por isso despreza e maltratada tudo o que é público, por isso ludibria e sacaneia seus conterrâneos

  2. A "melhor" forma de negar o passado é cancelando-o, o que se pretende fazer imputando a ele uma série de pecados imperdoáveis. Tudo com o objetivo de construir algo totalmente novo, revolucionário, com os canceladores ao leme, claro.

  3. No futuro, as crianças de hoje não saberão que houve um bicentenário da independência no Brasil. Que legado triste será levado. E o passado…

  4. Não sei até onde iremos com essas ideias estapafúrdias que a humanidade está criando... É interessante observar que, hoje, tendemos a querer implementar mudanças sociais sem saber no que vai dar!...

  5. Eu até entendo a esquerda, que é revolucionária por natureza, ter desprezo pelo passado, mas como que alguém que se diz de direita, que em tese deveria ser conservador, pode justamente desprezar também o passado?

Mais notícias
Assine agora
TOPO