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A jogada arriscada de Macron

Presidente da França aprova reforma da Previdência sem passar pelo Legislativo, mas pode vê-la revertida e perder ainda mais popularidade
23.03.23

Em 279 antes de Cristo, Pirro, general e rei do Épiro — região que hoje abrange território da Grécia e da Albânia —, derrotou as legiões romanas na batalha de Ásculo. Seu exército, porém, sofreu tantas baixas nesse confronto que, sem homens para reposição, acabaria perdendo a guerra contra Roma. Segundo Plutarco, quando alguém cumprimentou Pirro por vencer a batalha, o rei respondeu: “Outra vitória como essa e eu vou me arruinar completamente”.

É desse episódio histórico que vem a expressão “vitória de Pirro”, que agora, em 2023 d.C., talvez sirva para descrever o que pode acontecer ao governo de Emmanuel Macron após ter aprovado a reforma da Previdência na França.

Polêmica por si só, a reforma, cujo ponto principal é o aumento da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos, provocou a clássica reação francesa: gente saindo às ruas de Paris e outras cidades para protestar e queimar coisas. O presidente, porém, colocou mais lenha na fogueira ao dar — pela 11ª vez desde outubro de 2022 — uma espécie de drible constitucional: recorrer ao artigo 49.3 da Constituição da França, que permite ao premiê (hoje uma mulher, Élisabeth Borne) aprovar propostas por decreto, sem passar pela votação da Assembleia Nacional. Esse artigo também permite aos parlamentares apresentar uma moção de desconfiança, que se aprovada derrubaria a reforma e o próprio governo de Borne, mantendo o presidente no cargo. Na quinta passada (16), Macron deu a canetada do 49.3 para aprovar a reforma; na segunda (20), sobreviveu à moção de desconfiança, que o Parlamento deixou de aprovar por apenas nove votos.

As manifestações contra a reforma se intensificaram, e a proposta do presidente ainda precisa passar pelo Conselho Constitucional francês — é aí que mora o perigo para Macron, segundo o advogado Dorival Guimarães Jr., professor de direito internacional e coordenador do curso de direito da Skema Business School – Brasil. “Acho que pode haver uma decisão desfavorável no Conselho Constitucional, que levaria não à negativa total do projeto, mas à obrigatoriedade de passar pelo Legislativo, que é o caminho natural”, afirma Guimarães.

Para o professor, o recurso à canetada pode ter sido uma estratégia de Macron e Élisabeth Borne, “uma espécie de termômetro enquanto eles negociavam isso [a reforma] com a base do Legislativo”. “O que aconteceu é que, com medo das repercussões, essa base do Legislativo não seguiu a tese do apoio ao presidente”, completou Guimarães. O partido de Macron, o Renascença (antigo A República em Marcha), detém hoje 170 das 577 cadeiras da Assembleia e governa com o apoio de outras siglas, como o Movimento Democrático e o Republicanos. Em outubro do ano passado, o governo do presidente perdeu a maioria absoluta de que dispunha no Parlamento, o que explica seu recurso frequente ao artigo 49.3.

“Há a possibilidade de o Conselho Constitucional não aprovar. Até mesmo porque não houve debate suficiente e não houve voto”, diz Silvia Capanema, brasileira naturalizada francesa que é professora de história na Universidade Paris 13 e conselheira departamental — cargo que, no Brasil, estaria entre o de deputado estadual e o de vereador — em Seine-Saint-Denis. Capanema é do França Insubmissa, a legenda de esquerda radical fundada por Jean-Luc Mélenchon, que se candidatou três vezes à Presidência e ficou em terceiro no pleito de 2022, atrás de Macron e da direitista radical Marine Le Pen. Hoje, tanto o grupo de Mélenchon quanto o de Le Pen são radicalmente contra a reforma. Mas não só eles: pesquisa recente do instituto Ifop aponta que apenas 23% dos franceses acham “aceitável” a mudança na Previdência proposta pelo governo.

A conselheira departamental acredita que, “se a mobilização continuar grande”, o presidente pode ser levado a retirar a proposta de reforma por iniciativa própria: “Isso já aconteceu em 1995, outra reforma assim, e com o Contrato de Primeiro Emprego em 2006, por exemplo”. Capanema acrescenta que o França Insubmissa é a favor não do aumento, mas da redução da idade mínima para que as pessoas se aposentem. “O esgotamento já é muito grande hoje aos 62, e aos 64 anos será ainda maior. Defendemos a possibilidade de aposentadoria aos 60!”, afirma ela.

Guimarães, por sua vez, vê o sistema atual como insustentável — os gastos governamentais na França chegam a 55% do PIB do país, um dos maiores índices do mundo, e as aposentadorias consomem sozinhas 14% do PIB. “Na década de 1950, eram [necessários] quatro trabalhadores para financiar um aposentado. Nos anos 2000, eu precisava de dois. Nessa projeção, em 2040 eu não vou ter ninguém, não vou ter gente suficiente [para financiar um aposentado]. Então, eu não consigo de fato manter. A reforma é necessária, não é demagogia da parte do presidente francês”, diz o professor de direito internacional. “O sistema francês, diferentemente do alemão, é 100% público. Uma ideia de meio-termo seguindo o modelo alemão, por exemplo, era que houvesse uma participação de natureza privada. Isso poderia diminuir essa dependência dos cofres públicos e, com isso, seria mais fácil financiar essas aposentadorias futuras”, acrescenta.

Os riscos para o governo de Macron, porém, não se limitam à reforma da Previdência: mesmo que o Conselho Constitucional dê sinal verde ao seu projeto, a rejeição popular pode fazer o presidente perder em outros fronts, como o da política de imigração. “Existe uma iniciativa que já tramita e esbarra em alguns pontos. A direita, principalmente a extrema direita, tende a não aceitar critérios para a regularização dos sans papiers [sem documentos], aqueles que já trabalham na França, mas ilegalmente”, afirma Guimarães. “Mas esse é um projeto vital, porque estabiliza a questão imigratória e cria marcos. Assim como nós teríamos marcos, transições, nas aposentadorias. Se ele [Macron] perde nesse projeto, a impopularidade dele aumenta. Com a impopularidade aumentando, ele perde capital político para fazer e aprovar outras reformas.”

Para Capanema, o atual projeto de reforma previdenciária faz os imigrantes serem muito prejudicados. “Como chegam mais tarde ao país, muitos têm carreira incompleta e não conseguem cumprir os 43 anos de contribuição. É o caso de muitos brasileiros, que vêm como estudantes ou trabalhadores. Apesar de haver um acordo com o Brasil, em todos os casos que conheço as pessoas tiveram dificuldade de cumprir os anos de contribuição e se aposentaram com uma pensão parcial, não integral”, afirma a integrante do França Insubmissa. Já Guimarães defende um processo imigratório que chama de “mais efetivo, mesmo que de maneira mais seletiva”. “Precisa de mais trabalhador pra promover o crescimento francês. Se eu me regularizo, se eu deixo de ser um sans papiers, passo a também contribuir para o sistema de aposentadoria”, argumenta ele.

O que vai acontecer com a reforma da Previdência, portanto, pode selar o destino do próprio governo Macron, cujo mandato presidencial termina em 2027. Segundo o professor Guimarães, a canetada do presidente para aprovar a proposta foi uma jogada “extremamente arriscada”. “Há uma tendência de grupos oposicionistas ganharem espaço, diante da insatisfação da população com o governo. E isso pode incentivar, eventualmente, um debate sobre a participação cada vez maior da direita. Mas agora, de fato, temos que observar essas movimentações políticas”. Os próximos capítulos da novela da reforma definirão se Macron vai vencer ou se tornar uma versão moderna do rei Pirro.

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  1. O Macron "disunerou" de vez e não por acaso namora mulher feia e come sopa gelada num é Bolzão? Alous enfants de la patrie ... saiam desta negada !!!

  2. Situação delicada. Macron já está no auge da sua carreira política na França, impedido que está de ser reeleito presidente. Assim, tem a chance de aprovar uma reforma extremamente necessárias mas impopular. O problema é que Macron não está correndo o risco de implodir apenas o seu partido e legado político, mas também o centralismo da política francesa (no cargo de presidente), facilitando a chegada da extrema direita ou esquerda à presidência.

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