World Economic Forum/Sandra BlaserO ministro da Fazenda, Fernando Haddad: diante do cenário externo desafiador, o Brasil decidiu elevar dívida e gastos

Uma economia vulnerável

Se escapamos da marolinha do exterior, não significa que estaremos livres do tsunami que irá atingir o mundo quando os juros voltarem a cair
17.03.23

Foi em janeiro de 1979 que a monarquia iraniana caiu, dando lugar ao regime teocrático que ainda hoje comanda o país.

Para o mundo, a Revolução Iraniana significou o estopim de tensões que já afetavam o setor energético. E, a despeito de ter gerado uma redução de apenas 4% na oferta global de petróleo, foi o suficiente para fazer com que o preço do barril dobrasse em questão de poucos meses.

O preço do petróleo encontrou ali, no período conhecido como “segundo choque do petróleo”, seu valor mais alto na história até março de 2008, em cerca de 39 dólares por barril.

Assim como o petróleo, os índices de inflação também veriam recordes. Nos Estados Unidos, o custo da energia elevou o CPI, o Consumer Price Index, para 11,3% em 1979, 13,5% em 1980 e 10,3% em 1981.

O pânico generalizado com uma inflação nunca antes vista levou o Fed, o Banco Central americano, a agir. Sob o comando de Paul Volcker, os juros americanos chegaram a bater 20% em junho de 1981.

O choque funcionou para deter a inflação, que cairia para 6,1% em 1982 e voltaria aos 3% no ano seguinte. A consequência, porém, foi um desemprego que atingiu alarmantes 10% na maior economia do planeta.

Na América Latina temos um nome próprio para essa série de eventos: a década perdida.

Acostumados a se endividar em dólar para impulsionar o crescimento econômico via grandes obras, países como México, Brasil e Argentina chegaram aos anos 80 com uma dívida externa colossal. Os juros em alta tornaram a situação inviável.

Em 1982, o México declarou calote. Um ano depois, foi a vez da Argentina. Já em 1987, o Brasil declarou sua moratória.

Estima-se que, entre 1982 e 1985, os países latino-americanos tenham pago 102 bilhões de dólares em juros de suas dívidas externas, uma soma significativa diante de um PIB que, em 1983, era de 726 bilhões de dólares na região.

A exposição dos países latino-americanos aos solavancos da economia americana e a dívida externa não chegam a ser uma novidade. Tradicionalmente produtoras de commodities, as economias locais dependem do vaivém de ciclos econômicos no exterior, com demanda também por poupança externa que financie seus investimentos.

Vivemos dependentes do bom humor internacional, o que por vezes também não chega a ser suficiente.

Em outubro de 2008, quando os EUA enfrentaram sua maior recessão desde 1929, a crise foi encarada no Brasil como uma “marolinha”, nas palavras do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O Brasil havia passado por grandes transformações desde a última crise relevante nos EUA. Criamos o Plano Real, que pôs fim à hiperinflação, leis de responsabilidade fiscal e regramentos econômicos que nos fizeram aproveitar o período do chamado “boom de commodities”.

Também criamos uma imensa vantagem em relação a alguns vizinhos, como a Argentina. Desenvolvemos um mercado de capitais robusto, capaz de financiar o governo em moeda local, tornando o país menos dependente da cotação do dólar. Criamos um grande colchão de liquidez, as reservas internacionais, nos tornando assim um dos 10 maiores credores dos Estados Unidos.

O Brasil, que 30 anos antes ia de pires na mão negociar com bancos estrangeiros, agora financiava o endividamento americano. Foi nesse contexto que Lula encarou o fato como pouco relevante, apenas uma marola.

O que Lula não previu, e seus economistas muito menos, foi a mudança nos ventos internacionais.

A crise no sistema financeiro americano levou investidores a correrem justamente para os EUA. Pode parecer irônico, mas a lógica de investidores internacionais está no que se pode chamar de “privilégio do dólar”. Em resumo, o dólar se aproveita dos extremos. Uma situação muito boa na economia americana favorece o dólar; uma situação muito ruim também.

Este privilégio ocorre porque os Estados Unidos são os detentores da moeda global, o dólar. Historicamente, esse posto já pertenceu à Espanha e à Inglaterra, com a libra. Não é uma novidade e dificilmente mudará. O mundo se escora em uma moeda confiável para facilitar transações globais desde que o comércio se fortaleceu entre as nações, lá pelo século 17.

Sob o comando de Ben Bernanke, um estudioso da grande depressão de 1929, o banco central americano adotou em 2008 uma postura diferente: baixou os juros e inundou o mercado de dinheiro.

Bernanke, como muitos outros economistas, defende que o aprofundamento da crise de 1929 ocorreu por restrições na oferta de crédito, algo que definitivamente não faltaria após 2008.

Nos dez anos seguintes, o mundo viveria uma euforia, a era do “dinheiro grátis”. Os juros chegariam a ser menores do que a inflação, indicando que quem não tomasse crédito estava literalmente perdendo dinheiro.

Nesse cenário, o Brasil, que havia trabalhado para conquistar dólares na década anterior, via os Estados Unidos simplesmente criarem mais moeda.

Como Valéry Giscard d’Estaing, o ministro das Finanças da França nos anos 1960 (e depois presidente do país), descreveu: um trabalhador ao redor do mundo precisa destinar horas de trabalho e suor para obter um dólar que os Estados Unidos não gastam mais do que um segundo para criar. É o “privilégio exorbitante”.

Com dinheiro em abundância nos países ricos, os investidores saíram de países emergentes, enquanto as commodities, como soja, petróleo, carne e minério de ferro, passaram a valer menos.

O Brasil, como inúmeros outros países subdesenvolvidos, se via agora com a conta do aumento de gastos da década anterior, mas sem as receitas anteriores.

Para piorar, decidimos ampliar o endividamento e garantir programas de investimento com crédito subsidiado. O resultado foi que, em 2015, criamos a “Grande Recessão” brasileira.

Seria nossa segunda década perdida. A primeira por alta de juros nos Estados Unidos, e a segunda por uma queda.

Nossa vulnerabilidade ao cenário externo, claro, não desapareceu.

Antes de 2023 começar, a expectativa era que haveria menos crescimento no mundo e alta de juros. Em consequência, queda no preço de commodities e pressão sobre moedas emergentes.

Os eventos recentes no sistema bancário americano, porém, podem indicar uma reversão dessa tendência.

Cientes de que a alta mais rápida de juros da história americana já está provocando perdas, o mercado agora estima que o Fed possa diminuir a taxa já em julho deste ano.

O que temos visto por agora é que, como em outras ocasiões, o dólar está se fortalecendo junto a moedas de países subdesenvolvidos. Há expectativa de que o crédito volte a fluir por lá, o que favoreceria investimentos no país e no seu mercado financeiro.

Não é algo exatamente justo, mas é a realidade da economia em que vivemos. Há uma grande potência que se beneficia de volatilidade. Por aqui, o que nos resta fazer é aproveitar a oportunidade para fortalecer nossa própria situação.

Não é o que parece ocorrer, porém. Vimos que o governo brasileiro decidiu elevar dívida e gastos, mesmo sabendo que a economia estava desacelerando.

Temos hoje um cenário de preço de commodities em queda, dada a perda do poder de compra em países ricos. Isso, por sua vez, pressiona as contas públicas.

Cabe ressaltar que ao longo de 2021, com a alta de até 70% no preço dos combustíveis, inúmeros governos regionais viram sua arrecadação crescer até 30%, o que levou a um “milagre” de ajuste nas contas. Muitos países ampliaram gastos considerando essa receita como certa, algo que definitivamente não é.

Agora, em 2023, terão de se entender com preços menores e arrecadação de impostos sob pressão.

O resultado é que, se escapamos da marolinha do exterior, não significa que estaremos livre do tsunami que irá atingir o mundo quando as coisas retornarem ao estágio em que estavam, com juros menores.

Em ambos os cenários, não há como escapar de assumirmos as responsabilidades pelas reformas e cuidarmos da nossa situação. Para que quem sabe um dia possamos voltar a encarar um cenário externo favorável com as contas arrumadas.

 

Felippe Hermes é jornalista econômico.

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  1. Pena que o Andrade não vai ler esse artigo. E mesmo que leia, não vai entender. E mesmo que entenda, o chefe e guru dele não vai deixar fazer nada.

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