Foto: Marisa Wanzeller/ O AntagonistaValdemar Costa Neto e aliados em apresentação sobre a auditoria das urnas feita pelo PL

O fantasma das urnas

Bolsonaristas empedernidos continuarão achando que Bolsonaro venceu, mas o discurso contra as urnas se desgastou, assim como as condições políticas para contestar as eleições
25.11.22

“Como vamos viver com o fantasma da eleição de 2022?” Com essa pergunta, o presidente do Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto, procurou demonstrar, na quarta-feira, 23, que uma “revisão extraordinária” do resultado das urnas, requisitada ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), seria indispensável para dissipar as dúvidas de uma parte do eleitorado em relação à derrota de Jair Bolsonaro na corrida presidencial.

Bastaram quatro horas para que o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, decidisse o caso. Ele rejeitou o pedido de revisão dos votos. Mais que isso, condenou a coligação formada por PL, Republicanos e PP a pagar uma multa de 22,9 milhões de reais por litigância de má-fé. Moraes mandou ainda investigar Valdemar Costa Neto e o engenheiro Carlos Rocha, contratado pelo PL para auditar as urnas, por “crimes comuns e eleitorais com a finalidade de tumultuar o regime democrático brasileiro”.

O impacto dessa decisão relâmpago ainda não havia sido completamente absorvido nesta quinta-feira. Por isso, cabe retornar à pergunta de Valdemar Costa Neto: o Brasil vai ficar assombrado pelas eleições de 2022, ou vai passar para o próximo capítulo? A dura sentença de Alexandre de Moraes, personagem que o bolsonarismo transformou em um de seus maiores inimigos, vai redobrar o ânimo de quem bloqueia estradas e pede uma intervenção federal aos militares? Ou, depois dela, o movimento de contestação das eleições vai finalmente começar a refluir?

A tentativa de encontrar uma falha grave no sistema de votação brasileiro sai bastante enfraquecida desse episódio. O Instituto Voto Legal, presidido por Carlos Rocha, julgou ter encontrado essa falha ao compilar os relatórios de atividade (os logs) das 475 mil urnas utilizadas nas eleições e observar que todas aquelas fabricadas antes de 2020 exibiam um mesmo número de identificação. Dessa maneira, disse a análise, seria impossível associar cada boletim de votação a uma urna específica. Seria também impossível asseverar a integridade dos logs, ou seja, garantir que cada equipamento havia funcionado de maneira adequada, sem erros – ou interferências.

Com base nesse achado, o PL requisitou que os votos para presidente registrados nessas urnas de modelo mais antigo, no segundo turno da eleição, fossem desconsiderados. Isso resultaria na anulação de 67 milhões de votos. A eleição seria decidida pelos 51 milhões de votos válidos computados nas urnas de fabricação posterior a 2020. Segundo os cálculos do partido, isso inverteria o resultado das eleições. Bolsonaro venceria por 51% contra 49% de Lula.

Quando essa documentação foi entregue ao TSE, na terça-feira, 22, Alexandre de Moraes determinou que o mesmo tipo de análise realizado para o segundo turno das eleições fosse estendido ao primeiro turno, no prazo de 24 horas. Também deveria ser contemplada a votação para outros cargos, além de presidente: governador, senador, deputado federal e deputado estadual. A lógica era fácil de compreender. Uma falha do tipo relatado comprometeria a votação naquelas urnas como um todo. Não faria sentido limitar as consequências aos votos para presidente.

Esgotado o prazo, o PL deixou de cumprir a exigência de Alexandre de Moraes. Isso teria bastado para que o ministro mandasse arquivar a ação, por razões meramente processuais. Mas ele tomou o cuidado de requisitar um parecer à Secretaria de Tecnologia do tribunal e, assim, pôde rebater também os argumentos do Instituto Voto Legal, que definiu como “absolutamente falsos”.

Alguém dirá que os técnicos da Justiça Eleitoral só poderiam mesmo defender os sistemas digitais que eles próprios desenvolveram. O fato, porém, é que diversos especialistas independentes também contestaram as conclusões do Instituto Voto Legal pela imprensa, corroborando as explicações dos engenheiros do TSE. Ficou demonstrado que existe um outro identificador que permite atestar a integridade dos logs de urna e ao mesmo tempo correlacionar uma equipamento específico com seu boletim impresso: o “número de carga”, gerado quando o software de votação é instalado na urna.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéAlexandre de Moraes: sentença relâmpago e contundente
Em entrevista a Crusoé, Carlos Rocha afirma que realizou um trabalho técnico isento e que é injusto ser culpabilizado por isso. “Tenho 68 anos e uma reputação que foi construída ao longo de décadas de trabalho”, diz ele. Seu discurso a respeito das urnas, no entanto, mudou um pouco desde que ele falou em público pela primeira vez. Na entrevista coletiva de terça-feira em que apresentou sua auditoria, ele disse que era impossível associar uma urna a um log e que esse seria um problema insanável. A Cruosé, ele disse o contrário: “Sim, é possível associar um log a certa urna.” Ainda assim, afirma Rocha, identificou-se uma falha nas urnas antigas, o que não deveria acontecer.

O engenheiro da computação Bruno Albertini faz parte da Missão de Observação Eleitoral da Universidade de São Paulo, um grupo multidisciplinar com advogados, matemáticos, programadores e engenheiros que participou de todas as etapas do processo de preparação das urnas eletrônicas do TSE. Ele foi também um dos que se debruçaram sobre o relatório do Instituto Voto Legal nesta semana. “Há bugs no sistema de votação? Sim, como em qualquer outro sistema computacional. Mas jamais encontramos algo que comprometesse o sigilo ou a integridade do voto. O bug identificado pelo PL não possui nem de longe essa gravidade que querem lhe atribuir. Não faz sentido descartar milhões de votos por causa dele”, diz ele.

Marcos Simplício, também ele engenheiro computacional, integra a mesma missão da USP. Além disso, ele reuniu um time de pesquisadores de diversas universidades, como a Federal de São Carlos e a Federal do Pará, com a finalidade de produzir um material didático mostrando que as urnas brasileiras podem ser auditadas até mesmo por leigos. “Estamos em uma era em que todo mundo virou São Tomé”, diz ele. “Por isso, não faremos um relatório com ‘opiniões’, mas sim com experimentos e tutoriais que permitam à maior parcela possível da população fazer sua própria auditoria e verificar que as alegações que vêm sendo feitas sobre as urnas são alarmistas, não procedem. Quem quiser, poderá ver para crer.”

Essa ampla discussão do assunto vai tornando insustentável o discurso de que o sistema eleitoral brasileiro é uma “caixa preta”. Além disso, as condições políticas para a contestação do resultado das eleições também estão se reduzindo. Quando Alexandre de Moraes mandou o PL estender seu pedido de “verificação extraordinária” também ao primeiro turno, ele não expôs somente uma problema lógico da ação. Ele deixou escancarada também uma hipocrisia: como elegeu a maior bancada de deputados federais de sua história, o partido de Valdemar Costa Neto tentava satisfazer o desejo bolsonarista de melar as eleições presidenciais sem pôr em risco seus outros interesses.

A multa aplicada por Alexandre de Moraes à coligação PL-Republicanos-PP causou um racha entre os partidos. Republicanos e PP vão recorrer da sentença, alegando que Valdemar Costa Neto agiu em nome da coligação sem consultá-los e por isso o PL deve arcar sozinho com o ônus financeiro. Para esses políticos, faz sentido bancar os arroubos golpistas do bolsonarismo enquanto não houver perda de dinheiro e o risco de ir para o cadafalso.

Finalmente, como revelou O Antagonista nesta quinta-feira, os comandantes militares se reuniram com Jair Bolsonaro depois da decisão contundente de Alexandre de Moraes e avisaram que não existe unidade nas Forças Armadas para possibilitar uma reação mais dura contra o TSE. Nem mesmo uma manifestação política do Alto Comando seria viável neste momento.

Assim, neste momento, o que se vê é um desgaste cada vez maior do discurso de ataque às urnas eletrônicas; uma ruptura na base eleitoral de Bolsonaro, deixando isolados o PL e Valdemar Costa Neto; e novos sinais de que as Forças Armadas não vão tirar os tanques da garagem para satisfazer os “patriotas” acampados em frente aos quartéis. Muitos bolsonaristas empedernidos continuarão achando que a eleição foi roubada e deverão fazer barulho nos próximos anos. Mas o fantasma das eleições de 2022 será daqueles que gemem e arrastam correntes pelos corredores, sem no entanto pertencer ao script dos piores filmes de terror.

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