DivulgaçãoSeleção alemã faz gesto para reclamar da proibição do uso da faixa com a mensagem "one love"

A Copa da vergonha

Depois de torrar 200 bilhões de dólares para sediar o torneio, ganhar respeito e exercer influência, o Catar só ganha propaganda negativa. Experiência do Brasil já deveria ter servido de alerta
25.11.22

Governos buscam exercer influência sobre outros países de duas maneiras. Podem usar seu poder bélico ou econômico, o hard power. Quando a Rússia de Vladimir Putin invade a Geórgia ou a Ucrânia está, no fundo, forçando essas nações menores a se dobrar aos seus próprios interesses. A outra maneira é pelo soft power, quando um país convence os outros a agir de acordo com os seus desejos apenas investindo na própria imagem, propagandeando seus valores e adotando políticas inteligentes.

Praticar o soft power foi provavelmente um dos motivos que levou o pequeno Catar a conquistar — ou melhor, comprar — o direito de sediar esta Copa do Mundo da Fifa. O noticiário dos últimos dias, contudo, não podia ser pior. O país árabe só foi lembrado pela falta de liberdade de imprensa, pelos escravos que trabalharam na construção dos estádios, pela repressão à população LGBT e pela proibição do consumo de cerveja nos estádios. O risco é que os 200 bilhões de dólares gastos ao longo de dez anos para sediar o evento — a Copa mais cara da história — vire um grande gol contra, algo que iria na linha do que ocorreu com o Brasil após sediar a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 (nesse caso, dois gols contra).

O escrutínio do Catar nos primeiros dias foi implacável. Pelas contas do jornal britânico Guardian, 6,5 mil trabalhadores migrantes teriam morrido na construção dos estádios. A ONG Repórteres sem Fronteiras criticou o país por tentar limitar a cobertura da imprensa somente aos estádios com o propósito de encobrir as violações de direitos humanos. “As credenciais de imprensa proíbem filmar ou fotografar em residências particulares, negócios privados e zonas industriais, precisamente os lugares onde as violações dos direitos dos trabalhadores migrantes têm sido registradas”, diz um comunicado da ONG. O texto também falava de um sistema de espionagem teria sido criado para seguir repórteres críticos e invadir seus emails. Mesmo assim, foi impossível abafar as críticas. “Hoje temos muitas organizações da sociedade civil, jornalistas, acadêmicos e políticos que focam em questões de direitos humanos. Por isso, a menos que se esteja falando de regimes muito fechados, não é possível suprimir a divulgação de informações como se fazia no passado”, diz o sociólogo Richard Giulianotti, professor da Universidade Loughborough, no Reino Unido, e membro da Unesco.

Dentro de campo, a seleção da Alemanha posou para a foto oficial com a mão na frente da boca. Foi uma reação da proibição do uso de uma faixa de capitão com a mensagem “one love”, quer seria uma mensagem em defesa da diversidade e do respeito mútuo. O time da Dinamarca entrou no gramado com uma camisa monocromática, para esconder o símbolo da Federação Dinamarquesa. O objetivo era “não estar visível durante um torneio que custou a vida de milhares de pessoas”. Assim como a ação da seleção alemã, a medida dos dinamarqueses foi uma reação a outra proibição: a equipe foi impedida de estampar a frase “direitos humanos são para todos” no uniforme.

ReproduçãoReproduçãoO emir do Catar Tamin Al-Thani (centro), com o pai (esq.): holofotes
Duzentos bilhões de dólares gastos para sujar a própria imagem não parece ter sido uma boa jogada de relações públicas. Claro, o torneio está só começando e o Catar ainda pode conquistar o carinho da torcida. Os problemas dos primeiros dias estão mais ligados ao que se conhece na literatura científica como a “síndrome das notícias ruins”. Na véspera do evento, jornalistas do mundo todo aterrissam para fazer a cobertura, mas os jogos ainda não começaram. Os profissionais então saem à caça de notícias, o que dá ao país em questão uma visibilidade que nunca teve. “No primeiro dia, os jornalistas podem fazer uma reportagem sobre a culinária, depois, sobre o deserto, mas em algum momento eles também vão falar sobre a censura, a ditadura e os escravos”, diz o jornalista Daniel Buarque, doutor em relações internacionais que já publicou vários estudos sobre a imagem do Brasil no exterior. “Um dos problemas dessas coberturas é que os jornalistas acabam se baseando muito nos estereótipos, o que torna muito difícil mudar a imagem de um país.”

Buarque estudou o impacto que a Copa de 2014 e as Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016 tiveram na imagem que o Brasil projeta no exterior. Em 2018, ele publicou uma análise de sete rankings que medem como as nações são vistas pelas demais. Em todos eles, o Brasil perdeu posições. O governo de Lula queria se mostrar como uma potência global, mas o país continuou sendo conhecido por protestos sociais, futebol, corrupção, carnaval, praias e grandes festas. Crises políticas e econômicas, como o impeachment de Dilma Rousseff e a pior recessão da história, acabaram atraindo os mesmos holofotes que o país tinha montado para os eventos esportivos. “Para aproveitar a visibilidade que esses torneios dão é preciso saber aproveitar a oportunidade, mas não dá para conquistar o cliente se o produto não é bom”, diz Buarque.

Em vários desses rankings que medem soft power e a imagem dos países, como o Best Countries e o Good Country, o Catar aparece mal colocado, atrás do Brasil, e isso apesar de todo o dinheiro gasto para comprar aplausos. “A ideia que se tem do Catar é praticamente a mesma de outros nações desenvolvidas do Golfo: um país muçulmano extremamente rico, mas que também tem sérios problemas relacionados às liberdades individuais, sobretudo com relação a mulheres e homossexuais”, diz o historiador Daniel Malanski, que estuda soft power na University College, em Dublin, na Irlanda.

A questão é que, ao gastar bilhões em eventos esportivos, o Catar provavelmente não está só querendo ser bem-visto de acordo com a régua democrática do Ocidente. É certo que isso importa também. Tanto que, em 2018, o país cedeu à pressão das ONGs de direitos humanos e permitiu que migrantes mudassem de emprego e cruzassem a fronteira sem autorização do empregador, aliviando a situação dos trabalhadores. O Catar, assim, tornou-se o primeiro país do Golfo a permitir essa possibilidade.

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Mas o interesse do Catar em sediar a Copa vai mais além. Ao ser conhecido por todo o mundo, esse país com apenas 3 milhões de habitantes consegue ser respeitado por dois vizinhos encrenqueiros: Arábia Saudita e Irã. Esse mesmo empenho em ganhar fama mundial foi o que levou o Catar a criar a rede Al Jazeera, a negociar com o grupo terrorista palestino Hamas e a mediar as negociações entre o Talibã e os americanos, que estavam loucos para sair do Afeganistão. O Catar também hospeda a maior base militar americana no Oriente Médio e tem várias universidades estrangeiras. Todas essas conquistas, e a Copa está entre elas, fazem com que qualquer país pense várias vezes antes de invadir ou aplicar sanções ao Catar.

O soft power, assim, não é só uma maneira de ficar bem na fita com as ONGs e universidades europeias e americanas, mas uma ferramenta para perseguir os próprios objetivos. A Rússia ilustra bem esse caso. O país sediou as Olimpíadas de Inverno em Sochi em 2014 e a Copa da Fifa em 2018. Ao invadir a Ucrânia em fevereiro deste ano, porém, os russos perderam todo o soft power que tinham acumulado. Mas um olhar mais atento pode indicar uma estratégia única.

O envolvimento da Rússia com torneios esportivos internacionais ajudou a posicionar o país como um ator internacional dominante no cenário global e a normalizar e a legitimar Vladimir Putin como um líder poderoso”, diz o historiador israelense Yoav Dubinsky, que estuda as relações entres esportes, imagens de países e diplomacia pública e é professor na Universidade do Oregon, Estados Unidos. “Acredito que Putin usou esses campeonatos esportivos para propósitos geopolíticos, que acabaram levando à guerra.”

As interconexões entre soft power e hard power, portanto, são complexas. Os interesses dos países vão muito além de aparecer como respeitadores dos direitos humanos. Para o Catar, assim como para a Rússia, esse não parece ser o ponto central.

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  1. Eu só fui tomar conhecimento, na mídia, sobre as particularidades do Catar agora. Como muitos já comentaram, porque não exploram isso quando anunciaram o nome do país sede para a Copa 2022?

  2. No quarto parágrafo o autor informa que a Seleção da Alemanha "pousou" para fotos. Erro de digitação, alteração oriunda do novo acordo ortográfico ou eu devo pedir, urgentemente, o dinheiro da minha assinatura de volta?

  3. Ninguém fez nada quando o Catar se candidatou. Ninguém fez nada quando trabalhadores morreram na construção de estádios. Ninguém fez nada quando, encima da hora, o Governo do Catar proibiu a venda de cerveja. A Alemanha não teve peito de boicotar a Copa retirando sua seleção. AGORA INÊS É. MORTA. Desde que o mundo é mundo, sabemos que a força e o dinheiro MANDAM EM TUDO. Vide a Rússia

  4. A crítica se faz antes de aceitar em participar do evento, pois quem aceita e vai, apesar de tudo negativo, é porque no mínimo faz vistas grossas. Agora ficar bancando de bonzão e fazendo caras e bocas para tirar fotos de "reprovação" durante o evento, que concordou em participar, é coisa de babaca e hipócrita que só quer mesmo é lacrar.

  5. O Qatar foi escolhido como sede há 12 anos! E só agora descobriram essas questões sociais? Quer protestar de fato? Não vá para a Copa! Imaginem Alemanha, França, Espanha, Brasil, Argentina... dizendo lá em 2013-16: nós não vamos! Aí a coisa seria séria. Mas o $$$$$$$$ sempre fala mais alto. Agora querem dar uma de bom moço e lacrar? Vão se enxergar! A Noruega é outra: ameaçou não ir, mas disputou as eliminatórias com seu time principal. Se tivesse se classificado, estaria lá, lacrando!

    1. Apesar de parecer "politicamente incorreto: o texto do Renato, temoso que estar conscientes que os direitos humanos, engloba todos os humanos, independente de sexo raça, posição social, e até mesmo opção sexual. Mas a esquerda mundial divide para enfraquecer seus opositores e a própria sociedade. Pensem !

  6. O Brasil chegou a limpar a sua imagem de republiqueta das bananas quando da ocasião da Copa e das Olimpíadas. Na Europa, todos queriam conhecer o Brasil - principalmente o Rio - e conversar com turistas brasileiros nas ruas. O Brasil estava na crista da onda entre 2014 e 2016! Mas aí veio o escândalo Lula X Lava-Jato e acabou com tudo! A maior prova disso é que Lula deixou de ser “ o Cara” ( by Obama) e virou “o corrupto”. Agora somos conhecidos como o país que mais destrói o meio-ambiente…

  7. Rss... Aqui no Brasil nem 5 por cento sequer tinham ouvido falar em Qatar. Agora pelo menos 70 por cento já sabem. E a maioria não está nem aí para LGBT, compra da copa (como se outros, inclusive o Brasil fizeram), com trabalho escravo (como se quem ganha um SM não fosse), enfim, vamos deixar a hipocrisia de lado de encarar o mundo como ele é! A maioria dos brasileiros ficam é boquiabertos com os estádios e o progreso econômico estonteante do Qatar. Isto é soft power. O petróleo um dia acaba.

    1. Silvana... por aqui facilitamos a vida de ditadores. Vide sr Alexandre de Moraes e currutela e sr Master corrup.to elegível, descondenado eleito e empossado... o Catar é melhor...

    2. Se uma ditadura se candidata a atrair os holofotes do mundo, tem que arcar com o ônus e o bônus. Quem se admirou com os lindos estádios, foi informado de opressão e violações impostas à população. Porque facilitar a vida para ditadores?

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