AlexandreSoares Silva

Quem é Paulo Francis?

02.04.21

Cinquenta anos atrás Paulo Francis se mudou para os Estados Unidos.

Posso soar um pouco maluco? Algo importante aconteceu nesse momento de 1971, quando uma porta ultradimensional se abriu no mundo e quase saltamos para um universo paralelo em que nos tornamos um grande país.

Mas me deixe começar de maneira mais sóbria citando um conto esquecido de ficção científica. Ele é mencionado, sem indicação do título ou do autor, na introdução que o escritor inglês Colin Wilson escreveu para o seu próprio romance de ficção científica, Os Parasitas da Mente, de 1967. É assim que Wilson descreveu esse conto esquecido:

“…percebi, depois de terminar o livro, que havia roubado a ideia central – os parasitas da mente – de uma história de ficção científica que li certa vez. Nesta história, o primeiro homem a viajar para Marte de repente tem a experiência de uma estranha criatura se arrancando de sua mente e se lançando de volta gritando em direção à terra, que é seu lar.”

Colin Wilson descreve como esses parasitas mantêm a humanidade em um nível baixo de consciência, e como ao se livrar deles no espaço o personagem do conto atinge todo o potencial humano, nunca atingido antes na humanidade por causa justamente dos parasitas.

Não é óbvio que algo assim deve ter acontecido com o Paulo Francis 50 anos atrás? O que mais explicaria seu salto cognitivo ocorrendo junto com a saída de país, exceto os parasitas da mente?

Porque que diferença entre o Paulo Francis descalço e de costeletas que ia para o Antonio’s em Ipanema e levava sopapos de atores de teatro, e o Francis pós-71, mais liberal, direitoso em algumas coisas, ainda um pouco esquerdista em outras, mas principalmente muito civilizado – e que no lugar de esbarrar no Jaguar a caminho do Jangadeiro corria o risco de esbarrar na Greta Garbo a caminho do Le Cirque!

Está provado então, com rigor matemático, que durante a mudança de país e de hemisfério (não sei exatamente o quão longe é preciso ir do Brasil) ele se livrou dos parasitas da mente que se hospedam em todos os brasileiros e nos deixam um pouco burros.

E quase escapamos junto com ele. Por alto, devo ter subido uns quatro pontos de QI só de ler durante anos o Diário da Corte às quintas e domingos, e talvez você tenha subido também.

Mas, sim, é verdade: é só ver o país à nossa volta, ou notar a sintaxe dos emails que recebemos, para saber que os parasitas da mente venceram no final. Paulo Francis escreveu uma vez que um jornalista americano (Mencken) tinha arrancado a jequice à força dos americanos; ele mesmo quase fez isso conosco, e não podemos culpá-lo se assim que ele virou as costas voltamos a afundar na jequice em que nos sentimos mais confortáveis.

***

Na minha adolescência Paulo Francis era como um tio que vivesse em Nova York e me desse umas dicas pra deixar de ser caipira.
Gore Vidal, Louis Auchincloss, Isaac Deutscher, Anthony Burgess – de quantos escritores e historiadores ouvi falar pela primeira vez no Diário da Corte? E filmes: Ninotchka, A Malvada, Au Revoir Les Enfants, Le Chagrin et la Pitié etc.

Mas hoje quem está aí para indicar livros, filmes, músicas e pinturas? Há os perfis de cultura no Instagram, mas os que são bons têm algumas centenas de seguidores no máximo.

Então o que resta? Onde alguém de treze anos, inteligente, curioso, talvez com uma inclinação natural para as artes, vai ouvir falar pela primeira vez dos grandes nomes do romance, do teatro, da poesia e do cinema, se os pais não tiverem uma biblioteca em casa?

Os cadernos de cultura da época do Francis eram escritos por pessoas medianas que escreviam medianamente sobre cultura. Você abria o jornal e ficava sabendo, em textos legíveis, da existência das obras clássicas. Ao chegar aos dezoito anos você talvez ainda não tivesse lido Dostoiévski, mas pelo menos tinha ouvido falar dele. Todos os principais nomes das artes tinham sido enfiados no seu cérebro ao mesmo tempo que as tiras do Recruta Zero e do Hagar, o Horrível.

Mas hoje a opção para um leitor curioso de 13 anos oferecida pelos jornais é ler um ativista político de 20 anos escrevendo sobre filmes e peças dos últimos 10, ou um mestrando de 30 escrevendo mestrandamente sobre a opinião de Horkheimer sobre a opinião de Hannah Arendt sobre o Mazzaropi.
Só sei que assino dois jornais para poder forrar a área de serviço do apartamento, e quando o meu vira-lata caramelo faz o que tem que fazer numa página de um caderno de cultura, quem sai ganhando alguma coisa desse intercâmbio intelectual é quase sempre o caderno de cultura.

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  1. Achei seu texto magnifico! Fazem alguns anos que os jornais que assino, dois coincidentemente, são usados pelo meu cão labrador fazer suas necessidades fisiológicas também em minha área de serviço. Comento com meus amigos que meu Labrador é um intelectual, porque ao acordar só faz coco e xixi, nos jornais que assino os quais há muito tempo deixaram de informar seus leitores. Triste fim do jornalismo profissional.

  2. Realmente, tem muita gente fazendo falta nos chamados Cadernos de Cultura dos meios de comunicação brasileiros: Francis, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Otto Lara, Carlinhos de Oliveira, Elsie Lessa, Carlos Leonam e tantos outros. Deve ser consequência da nossa falta de Cultura e do nosso baixíssimo nível de Educação...

    1. A irreverência de Paulo Francis só se compara a de Nelson Rodrigues. Talentos quase geniais. Paulo marcou uma época. Sua cultura era incomparável.

  3. Texto estranho, mas adorei! E o último parágrafo? Kkkkk! No mais, lembro a capa da Veja, por ocasião da morte de Paulo Francis: "Ele vai fazer falta"

    1. Caro Alexandre, meus parabéns, sou um velho de 82 anos, cujo maior sonho de consumo sempre foi o de ler 6 horas por dia. Daí vê meu interesse pelo escreveste , que é a tradução de uma realidade . Pois bem, isto é consequência de um ensino que abandonou a meritocracia.

  4. Paulo Francis era mais que um intelectual: era um jornalista erudito, autor de textos que refletiam seu intelecto incomum. Hoje, aos 91 anos eu imagino qual seria o seu grau de indignação ante "tanto horror perante os céus" (Castro Alves), que avassala Pindorama, mas há 27 anos um diagnóstico errado lhe ceifou a vida.

  5. A maior prova da jequice brasileira foi eleger um militar e político medíocre que tem como hábito violar a língua pátria e transformar os dedos em revólveres.

  6. Esse país tem um histórico culto por Parasitas de Poder, nepotismo hereditário em cargos vitalícios recheados de benesses de abusos adquiridos. O resultado das mediocridades e qualidade de pensamentos impressos atualmente ,só serve para forrar o chão e acrescentar os conteúdos de nossos animais de estimação.

  7. Muito interessante o artigo! Coincidentemente refleti certa vez sobre o cansaço mental que o Brasil nos dá. É tanta coisa ruim e tanto descaso das autoridades acontecendo o tempo todo que não temos energia pra lidar com aquilo que realmente importa. Nossa produtividade e aproveitamento escolar não são baixos à toa. O Brasil cansa! Exaure toda nossa energia e precisamos usar o que resta dela pra (sobre)viver. Deve ser essa sensação que Paulo Francis teve ao sair do Brasil, a de libertação!

  8. Paulo Francis foi um gênio indomável, tive o prazer em ler muitos Diário da Corte e livros desse genial cronista. Brasil sucumbiu à mediocridade como previu outro gênio da crônica, Nelson Rodrigues...

  9. Também era um leitor assíduo do Francis. Por todos os motivos que o texto revela, mas principalmente porque a leitura dos artigos me dava um imenso prazer. Bons tempos!

  10. Cultura de verdade infelizmente é para poucos, sempre foi, e no mundo todo. A Internet poderia ter mudado isso, só que não. Pelo contrário.

  11. Felicitações pelo artigo! O Brasil está rapidamente se tornando um país de semi analfabetos, poucos da geração abaixo do 30 anos leem. Pobres de mente. Como deixamos a educação chegar a este nível?

  12. Todos vocês jornalistas desta horrível revista são uns pobres recalcados e infelizes. Vão plantar batatas que se tornarão entes melhores. Temos pena de vocês

    1. Se manda IZELIANA!! (que nome! ) você não tem intelecto nem cultura para ler os artigos desta revista.

    2. Leio seu comentário e me pergunto: petista ou bolsominion? Mas em seguida concluo: tanto faz, é a mesma coisa.

  13. Sim, Francis faz muita falta! Mas que tal a Crusoé criar uma seção de cultura com indicação de livros, filmes e outras expressões artísticas?

  14. Excelente coluna. Por coincidência, nos últimos dias estava revendo a coletânea de Francis: “O diário da Corte”. Em um escrito de 9.12.85 em que elogia Roberta Campos, Francis conclui profeticamente “ O Brasil regride. É a meu ver um país condenado, sem futuro” ( pag. 209).

  15. Alguém pode informar para este moço que o ato de evacuar é natural mas a forma como praticamos, de maneira reservada, em bacia de louça, com ducha, etc, é cultural, enfim, tudo que fazemos em decorrência do que produzimos é cultura. Cultura não se resume ao entretenimento e a literatura. O parasita do nosso país é o modelo de cultura que produz e reproduz péssimos tipos de homens, (M/F).

  16. Paulo Francis e suas crônicas inesquecíveis me fizeram conhecer um mundo de autores e obras fundamentais na formação de qualquer adolescente Ele nos fez a todos que o seguiam melhores pessoas com o banho de cultura e civilidade que sempre nos oferecia Parabéns pela sua excelente crônica Alexandre!

  17. Crusoé a cada dia refinando o nível dos colunistas.. Conseguem ir além do dia a dia árido dos assuntos da Política mas sem cair em um eruditismo opaco e inacessível aos mortais. Parabéns aos envolvidos

  18. Ótimo, Alexandre. Tanto a matéria quanto a lembrança sempre saudosa do Francis. Sou menos ignorante hoje por conta dele.

  19. É, eu li "Rumo à Estação Finlandia" de Edmund Wilson, entre outros, por causa do Francis. Francis faz muita falta; foi morto pela Petrobras, coitado.

  20. Prezado Alexandre, a lembrança de Paulo Francis para nossa geração é a afirmação da lucidez contra o atraso mental q sempre caracterizou o país. Todos q o leram em suas crônicas, e entenderam a mudança de latitude, sabiam q mudaríamos de patamar. Toda nossa resistência em aceitar a boçalidade desses dias vem daqueles textos Inspiradores.

  21. verdade, quando converso com jovens percebo quão limitados e pouco curiosos intelectualmente são. penso que estamos num processo de degeneração intelectual. na busca por igualdade estamos nivelando por baixo, ao invés de proporcionar igualdade de oportunidades.

  22. Carlos F.S. Lima disse quase tudo: „voltar ao básico da CF88 e reconstruir as instituições longe dos casuísmos convenientes“...é preciso reconstruir um movimento apartidário, democrático e republicano...sem cair na tentação do poder pelo poder. O que não é possível é continuar na polarização que vemos hoje.“ AS FFAA QUE CUIDEM DISSO!

  23. Obrigado Alexandre, sem excesso de saudosismo, é triste constatar nossa involução cultural, que no turbilhão tecnológico que nos afoga e sufoca, a desinformação se destaca na bruma onde a maioria consegue respirar.

  24. Excelente texto! Além dos parasitas da mente, o intercâmbio cultural foi ótimo! Rendeu uma boa gargalhada para aliviar o dia.

  25. Hoje temos Estudos dos Gays, Lésbicas e Transgêneros bombando nas universidades. Pr’a que mais? O importante é aprender a escolher o gênero que se quer ter e ler o zap zap, a maior fonte de informação política e artística dos brasileiros.

  26. Qual é o ponto do autor? Falar que a cultura e mídia brasileira em sua maioria são medíocres?? Isso já sabemos e é obviamente fruto de vários anos sob o manto da PATRIA EDUCADORA regida pelos analfabetos e estocadores de vento.

    1. Ótimo Alexandre! Adorei. Talvez como exercício intelectual, você poderia se colocar no lugar do Paulo Francis e descrever o país em que vivemos hoje,como ele faria se estivesse entre nós hoje!

    2. Quem é Paulo Francis? Procurem um artigo dele na Folha nos dias da posse do Collor e saberão: "Finalmente um presidente alto, forte, branco...

    3. Não entendeu, não se intimide, leia de novo. Caso não entenda ainda, falta-lhe referência, então leia uns dez anos de colunas de Francis, volte e leia de novo.

    4. Claro, antes dessa época éramos a Finlândia em educação, a França em cultura e a Coreia do Sul em inovação...Meu caro, somos fracos nesse quesito independentemente do dono do poder

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