Um herói verdadeiro da liberdade de expressão
No final da década de 1990, participei das negociações do Estadão, onde eu trabalhava, para trazer Salman Rushdie ao Brasil em parceria com a editora Companhia das Letras. Já se haviam passado quase dez anos desde a fatwa decretada contra ele pelo aiatolá Khomeini, do Irã, e Rushdie começava a abrir mão do aparato policial...
No final da década de 1990, participei das negociações do Estadão, onde eu trabalhava, para trazer Salman Rushdie ao Brasil em parceria com a editora Companhia das Letras. Já se haviam passado quase dez anos desde a fatwa decretada contra ele pelo aiatolá Khomeini, do Irã, e Rushdie começava a abrir mão do aparato policial que garantia sua segurança. No Brasil, no entanto, a Polícia Federal não queria correr riscos. Enquanto o escritor estivesse no país, teria de ser acompanhado por agentes armados e transportado em carros blindados. Rushdie decidiu não vir. Para ele, que vivera escondido por tanto tempo, como narra o livro de memórias Joseph Anton (um dos seus codinomes para o serviço secreto britânico), nada era mais importante do que reafirmar sua liberdade.
“Não quero ser para sempre o escritor da fatwa”, disse Rushdie em diversas oportunidades. Ele de fato não deixou que a sentença o definisse - ou destruísse. Continuou escrevendo ficção enquanto mudava de esconderijo para esconderijo e, em artigos e entrevistas, tornou-se uma das grandes vozes contra a intolerância religiosa em todo o mundo. A coragem com que ele reafirmou seu direito de manifestar livremente sua fantasia e transpor qualquer assunto para a ficção - inclusive aqueles que outros consideravam sagrados ou intocáveis - garantem a ele um lugar na história da liberdade de expressão, não abaixo de John Milton ou de John Stuart Mill, dois dos autores ingleses a quem essa liberdade normalmente é associada.
No começo deste século, depois do 11 de Setembro de 2001, parecia que o risco da fatwa estava totalmente afastado. Em 2003, Rushdie finalmente pisou no Brasil e participou de um evento na Bienal do Livro de São Paulo, onde o encontrei. Dois anos mais tarde pude entrevistá-lo em Londres, pouco antes do lançamento do romance Shalimar, o Equilibrista, que trata da guerra infindável entre Índia e Paquistão na região da Cashemira, e tem como protagonista um fanático treinado para cometer assassinatos. Lembro de Rushdie indo embora do hotel onde a conversa aconteceu, caminhando sozinho e tranquilo pela rua do centro da capital inglesa.
O fato, no entanto, é que a fatwa nunca foi completamente revogada. E agora, mais de trinta anos depois de um aiatolá iraniano ter decidido que as menções de um romance ao profeta Maomé deveriam ser punidas com a morte, parece que o ódio finalmente conseguiu alcançar Rushdie. Torço para que ainda desta vez ele consiga derrotar aqueles que não desejam apenas sua morte, mas o silêncio do pensamento e da arte.
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Comentários (9)
Eduardo
2022-08-13 11:28:05Parabéns pelo texto Graieb. Inacreditável como o fanatismo e a ignorância persistem.
Juliana
2022-08-13 09:08:02Na mesma torcida, Graieb!
Odete6
2022-08-12 19:48:40Minha nossa..... a estupidez, a ignorância, o atraso, a perversidade e o ódio aos SERES HUMANOS DECENTES, LIVRES E LÚCIDOS - como o Sr. SALMAN RUSHDIE - não tem mesmo limites.... eis que as trevas continuam insistentemente assombrando a HUMANIDADE através dos fanáticos moralmente cegos, surdos, mudos, de nariz entupido e completamente doentios de todos os naipes!!!!
Nefelibata Atávico
2022-08-12 18:16:03Excelente. Contra a escuridão autoritária, luz e coragem.
Jaime
2022-08-12 18:04:53O fato é q o tal debochista chamado Porchat só criou uma peça em que Cristo era um Gay porque sabia que os católicos preferem "entregar o assunto a Deus" em lugar de mandar o sacrilego dar uma voltas no Inferno. Se fosse nos tempos da Inquisição, certamente ele teria um pouco mais de cuidado. Em nome da "Liberdade de Expressão" tem-se cometidos barbaridades contra a Fé alheia. Dizer que ateus como esses caras respeitam crenças é dizer que Deus e o Diabo vão fazer as pazes.
Mara
2022-08-12 16:01:13Excelente texto, Graieb. Torçamos pela vida com liberdade.
MATEUS PEREIRA DA SILVA
2022-08-12 15:08:10Irei pesquisar a sua obra
claide reis rocha
2022-08-12 15:01:33Vejam o perigo do fanatismo "religioso", e políticos e líderes "religiosos" corruptos que USAM a religião para tocar a boiada para onde lhes convêm , enquanto enchem as burras de dinheiro.Brasil,abra os olhos!
Maria
2022-08-12 14:40:18Isso tudo é muito triste.