Cai o tráfico, fica a influência
Apontados pela Lava Jato, os elos familiares entre escritórios de advocacia e tribunais agora são reforçados à luz do dia, com ajuda do presidente
A aliança entre Gilmar Mendes e Lula contra a Lava Jato, iniciada em 2017 após a força-tarefa anticorrupção atingir Aécio Neves e fortalecida nos anos seguintes quando ela acusou esquemas no Poder Judiciário, teve um novo desdobramento na primeira quinzena de março de 2024, quando o presidente da República nomeou Eduardo Martins e Flávio Jardim para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Flávio Jardim, cuja indicação foi apoiada por Gilmar, é sócio do escritório de advocacia Sergio Bermudes, que também tem como sócia a advogada Guiomar Feitosa Mendes, mulher do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Com ajuda de Lula, portanto, Gilmar emplacou o sócio da esposa no TRF-1, que atua em processos de 13 unidades da federação (Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins).
Já o advogado Eduardo Martins, apontado em novembro de 2020 por Crusoé como “um fenômeno do filhotismo”, havia sido alvo em setembro daquele ano da Operação E$quema S, desdobramento da Lava Jato no Rio de Janeiro que também atingiu o advogado Caio Asfor Rocha, da família de Gilmar. Caio é casado com Tatiana, sobrinha de Guiomar e filha do empresário Francisco Feitosa de Albuquerque Lima.
Ao pedir, sem sucesso, claro, a suspeição de Gilmar no caso dos pagamentos milionários feitos pela Fecomércio/RJ a escritórios de advocacia que pudessem influenciar decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Lava Jato apontou transações entre seu cunhado Francisco Feitosa e Caio Rocha, bem como o fato de a entidade ter patrocinado eventos organizados em 2015, 2016 e 2017 pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, o IDP (atualmente, Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), que tem como sócios-fundadores o ministro e seu apadrinhado Paulo Gonet, atual procurador-geral da República indicado por Lula.
Caio Asfor Rocha e Eduardo Martins, denunciados pela força-tarefa por tráfico de influência e lavagem de dinheiro, são filhos de dois ex-presidentes do STJ: respectivamente, Cezar Asfor Rocha, que comandou o tribunal no biênio 2008/2010, e Humberto Martins, que esteve à frente da Corte no biênio 2020-2022.
Segundo o Ministério Público Federal, o ex-ministro Cezar Asfor Rocha, também denunciado em 2019, recebeu 2,67 milhões de reais por meio de subcontratações feitas por três escritórios contratados pela Fecomércio/RJ na gestão do empresário e delator Orlando Diniz, entre os anos de 2015 e 2016. Um dos escritórios que destinaram pagamentos a Cezar e Caio foi o do próprio Eduardo Martins, que recebeu 40 milhões de reais diretamente da entidade. O MPF ainda sustentava que a Fecomércio havia destinado a Eduardo outros 40 milhões de reais, por fora, por intermédio de terceiros.
Na presidência do STJ, seu pai, Humberto Martins, tentou se vingar da Lava Jato, abrindo um inquérito sobre a suposta atuação de procuradores para investigar e intimidar ministros do tribunal. A apuração tinha como base uma matéria de 2021 sobre o conteúdo não autenticado de mensagens roubadas, publicada por uma repórter que, em 2024, viraria assessora de Ricardo Lewandowski no Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Lula. Humberto Martins teve de arquivar o processo em 2022 por falta de provas, como detalhei, na época, no artigo “Lava Jato x Vaza Jato”.
Curiosamente, Gilmar suspendeu em 2020 a ação penal da Operação E$quema S, apontando “uma situação de dúvida razoável sobre a real condição dessas autoridades” com foro privilegiado. Na ocasião, ele contrariou parecer da subprocuradora Lindôra Araújo, segundo o qual a força-tarefa não as investigou ilegalmente, já que a Lava Jato do Rio havia enviado para a Procuradoria-Geral da República (PGR) a parte da investigação ligada a tais autoridades e os procedimentos foram arquivados “pela ausência de indícios mínimos da prática de ilícitos”. Nem o arquivamento anterior, nem o posterior, portanto, constrangeram Gilmar na blindagem do sobrinho da esposa, do filho do então presidente do STJ e de mais 24 alvos, incluindo Cristiano Zanin, defensor de Lula, e Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro.
Ao contrário, levantar “dúvidas” para anular provas contra alvos da Lava Jato acabou se consolidando como método no STF, conforme explicado na edição 302 de Crusoé à luz das decisões de Dias Toffoli não só de aliviar multas bilionárias de empresários que confessaram suborno – como os irmãos Batista, clientes da esposa do ministro, a advogada Roberta Rangel; e os Odebrecht –, mas de investigar quem – como a Transparência Internacional – aponta corrupção e a impunidade garantida no Supremo.
Os elos familiares entre escritórios de advocacia e tribunais, destrinchados pela força-tarefa contra a qual Gilmar e Toffoli atuam, vêm sendo reforçados à luz do dia. Quando o STF, em agosto de 2023, autorizou os próprios ministros e demais juízes a julgarem casos de clientes de escritório de cônjuge ou de parente, o Grupo Petrópolis, investigado na Lava Jato, já havia contratado três advogados parentes de ministros do STF: Karine Nunes Marques, irmã de Kassio Nunes Marques; Viviane Barci de Moraes, mulher de Alexandre de Moraes; e Maria Carolina Feitosa, enteada de Gilmar.
“Existe uma divisão familiar. A mulher fica com o poder econômico nos escritórios de advocacia; e o marido, com o poder político dentro do Judiciário. Desta forma, eles ganham muito e têm o poder na mão. É realmente um acasalamento perfeito”, disse a ex-ministra do STJ Eliana Calmon ao Papo Antagonista, naquele mesmo mês.
Emplacar aliados em outros tribunais, além de órgãos de fiscalização e controle, como a PGR, só aumenta o poder político desses maridos, ou parentes, dentro do Judiciário. A disputa é tão acirrada que incendiou a relação entre Gilmar e Kassio em 2022, quando o primeiro fazia campanha pela indicação do desafeto do segundo, Ney Bello, do TRF-1, para o STJ. O veto pessoal de Kassio ao antigo colega de Corte levou o então presidente Jair Bolsonaro a optar pelo favorito do ministro à vaga, Paulo Sérgio Domingues.
Mas Gilmar e Kassio já se entenderam. A trégua foi costurada pela esposa do decano aliado de Lula – sempre ela, Guiomar – no final de 2023, em jantar na casa do casal. Em novembro, Lula indicou outro aliado de Kassio para o TRF-1, João Carlos Mayer Soares, e conseguiu do ministro indicado por Bolsonaro, em dezembro, um pedido de vista no julgamento da Lei das Estatais. Com isso, Kassio prorrogou o tempo para indicações políticas do governo em empresas públicas e segurou o placar até a chegada de Flávio Dino à Corte para desempatar o jogo a favor dos interesses do presidente. (Naquele mesmo mês, aliás, a ex-mulher de Kassio, Maria do Socorro, foi contratada como assessora da Presidência da Caixa Econômica Federal.) Já na ação em que o Executivo busca maior poder de voto da União na Eletrobras, Kassio também agradou o governo, encaminhando o caso para uma câmara da Advocacia-Geral da União (AGU).
Com a Lava Jato fora do caminho, todos se sentem à vontade para fazer lobby familiar ou transinstitucional, e ampliar ainda mais seus tentáculos de poder, blindagem e barganha na República do Escambo brasileira. O caminho adotado, porém, só confirma como a força-tarefa atrapalhava esse sistema. Cai o tráfico, fica a influência.
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Comentários (10)
JÚLIO
2024-04-15 11:59:51Excelente trabalho, Felipe! Destrinchou, dando exemplos, o emaranhado indecoroso entre os tribunais superiores e os escritórios de advocacia. Parabéns!
ADRIANO
2024-03-19 21:58:45Odiosa orgia‼️
Renata
2024-03-19 20:23:51Até me perdi nesse emaranhado.
Odete6
2024-03-18 05:42:35POR FALAR EM TUDO ISSO,O GENERAL *MARCO ANTÔNIO FREIRE GOMES* e O TENENTE-BRIGADEIRO DO AR *CARLOS DE ALMEIDA BAPTISTA JÚNIOR* FIZERAM SOAR, não as cornetas, MAS OS CLARINS QUE TIRARAM O BRASIL da rota de interferência e de domínio criminoso das NOSSAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS por um broncossauro estúpido, doentio, um "nanocapitinho" que só envergonhou e envergonha o EXÉRCITO E O POVO BRASILEIRO.
Annie
2024-03-18 01:21:24Fica até desanimada o mal triunfa nas altas camadas do poder.
luiz antonio - rj
2024-03-17 10:23:13O Brasil não sofre de pouca vergonha. Sofre de vergonha nenhuma. Uma hora a panela explode
DAISY SCHMIDT
2024-03-16 19:51:42Essa turma perdeu completamente os escrúpulos mínimos com as "aparências". Agora é tudo feito na cara da sociedade, como se fosse algo normal e corriqueiro...
Marcia Elizabeth Brunetti
2024-03-16 17:32:32Um artigo como esse deveria ser usado como referência para cursinhos pré-vestibulares. Só assim para os jovens conhecerem melhor quem são os bandidos que eles estão defendendo. Lógico que esse assunto não irá parar nas universidades públicas, mas nem precisa. Vale apenas para que os estudantes possam analisar assuntos do cotidiano que normalmente eles não se interessam.
Maggie J
2024-03-16 19:02:06Edição histórica de CRUSOÉ para ser lida, relida e salva, já que vivemos um « 1984 » com a história sendo reescrita diariamente pelos poderosos e a imprensa conivente. E essa promiscuidade obscena e explícita no judiciário « supremo » em plena luz do dia.
Antonio Amaral Junior
2024-03-16 11:26:37Parabéns Felipe. Você , Madeleine, Augusto de Franco, Carlos Graieb… que bom ler pessoas lúcidas como vocês. Parabéns!