O colégio que decide
Em suas semanas derradeiras, a disputa eleitoral americana foi transferida para meia dúzia dos cinquenta estados da federação americana. Tanto o presidente Donald Trump como seu rival democrata Joe Biden têm concentrado seus comícios no Arizona, Carolina do Norte, Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e Flórida. São esses os estados que recebem a maior fatia das receitas publicitárias destinadas a convencer os americanos a se registrar para a eleição e votar. Se Trump tem alguma chance, ela está em virar o jogo nesse punhado de estados, onde sua diferença para Joe Biden é menor. Enquanto nacionalmente o democrata lidera por oito pontos percentuais, nesses “estados-pêndulo” a vantagem não supera quatro pontos percentuais. Trump, dessa forma, poderia repetir o inusitado feito de 2016, quando se sagrou vencedor mesmo angariando menos votos que a sua rival, a democrata Hillary Clinton.
A distorção é por causa do Colégio Eleitoral, uma dos sistemas mais controvertidos dos Estados Unidos atualmente, mas que também foi um dos mais decisivos na formação da democracia americana. Criado pela Constituição de 1787, ainda em vigor, o Colégio Eleitoral só se reúne uma vez a cada quatro anos com a única de escolher o novo presidente. Neste século, em dois momentos o Colégio Eleitoral inclinou-se para o candidato menos votado na eleição nacional. Em 2000, com George W. Bush, e em 2016, com Donald Trump, ambos republicanos. Não é por menos que a maior parte dos democratas defende a extinção desse mecanismo. Quase 60% dos americanos apoiam uma mudança na Constituição para eliminar o colégio. Entre os democratas, esse índice é de 80%.
O Colégio Eleitoral é composto por delegações de vários estados. Com exceção de dois deles — Maine e Nebraska —, os estados enviam para o encontro que escolhe o presidente apenas delegados de um mesmo partido, seja o Democrata ou o Republicano. É a fórmula do “vencedor leva tudo”, em que os votos para o partido que ficou em segundo lugar na disputa estadual são ignorados. Michigan, Wisconsin e Pensilvânia enviaram apenas delegados republicanos em 2016, o que proporcionou a vitória de Trump. Hillary Clinton venceu com mais de 4 milhões de votos de vantagem na Califórnia. Se tivesse vencido com apenas um, não faria diferença, pois contaria com todos os delegados do estado da mesma forma.
A história explica por que o Colégio Eleitoral existe e funciona dessa maneira. Em 1787, o ano da Constituição, as treze colônias americanas tinham acabado de vencer a Guerra de Independência contra a Inglaterra. Com isso, representantes dessas colônias, que passaram a se denominar “estados independentes”, foram enviados para a Filadélfia. Durante um verão, eles foram incumbidos de criar não apenas um país, mas um novo sistema político.
Na Filadélfia, as discussões sobre o que fazer giravam em torno de alguns problemas centrais. O primeiro deles era garantir que o presidente fosse independente do Congresso. Temia-se que, com a possibilidade de reeleição, o mandatário passaria a se preocupar apenas com os legisladores, para manter-se no poder. O conceito moderno de parlamentarismo, em que o rei é uma figura decorativa e o primeiro-ministro age com independência, não existia. No Reino Unido, ainda era o monarca que escolhia o chefe de governo.
Outra questão era em relação à adoção da democracia direta, que foi sugerida por alguns fazendeiros e intelectuais à margem do processo. Os pais fundadores dos Estados Unidos, porém, rejeitavam esse modelo. Para eles, a democracia fomentava a paixão das massas e as facções, o que poderia levar à desintegração do país que ainda estava para ser construído. “Nunca houve uma democracia que não tenha cometido suicídio”, disse John Adams (1735-1826), segundo presidente dos Estados Unidos. “Democracia pura é como rum puro: produz intoxicação e com ela milhares de travessuras e besteiras”, afirmou John Jay (1745-1829), primeiro presidente da Suprema Corte.
O temor de uma democracia com um presidente eleito diretamente pelo voto popular também amedrontava os delegados que representavam os estados menores. “Eles sabiam que seriam constantemente derrotados pelos eleitores dos grandes estados”, diz a advogada e escritora Tara Ross, autora do livro Por que precisamos do Colégio Eleitoral (em tradução livre).
A despeito de seu principal defeito — o de não parecer tão democrático como deveria —, o Colégio Eleitoral já provou ser capaz de vários benefícios. O mais evidente deles é o de reduzir a possibilidade de fraude. Como cada estado tem o seu sistema de votação, seria preciso interferir em dezenas deles para alterar o resultado. Outro ponto a favor é que os candidatos americanos precisam convencer eleitores em estados com diferentes perfis. Essa necessidade tem evitado que candidatos busquem apoio apenas em uma determinada região do país. Nos anos logo após a Guerra Civil (1861-1865), os democratas eram fortes nos estados do sul, mas não tinham votos suficientes para ganhar uma eleição. Assim, fizeram campanha no norte. Os republicanos, por sua vez, fizeram o movimento contrário. “Ambos os partidos políticos foram forçados a ampliar a base eleitoral, o que ajudou a curar parte da divisão entre o norte e o sul”, diz Tara Ross. “Sei que parece engraçado falar em curar divisões em um momento como este, em que os americanos parecem tão zangados e polarizados, mas isso já ocorreu antes.”
Para abolir o Colégio Eleitoral, como querem alguns, seria necessária a aprovação de uma emenda constitucional por dois terços dos deputados e senadores, além da ratificação por três quartos dos estados. Não é algo impossível. Em mais de 230 anos de existência, a Constituição já recebeu 27 emendas. Contudo, com os Estados Unidos divididos como estão hoje, o mais provável é que os candidatos continuem escolhendo muito bem onde devem fazer campanha.
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